Crítica | Ainda Estou Aqui é um tratado sobre memória e resistência contra o silêncio da Ditadura

Ainda Estou Aqui é uma obra poderosa que provoca uma reflexão essencial sobre memória e sobre a necessidade de confrontar um passado sombrio. Muitos reclamam que o cinema brasileiro revisita frequentemente o tema da ditadura, enquanto consomem com gosto produções hollywoodianas sobre a Segunda Guerra Mundial e o Vietnã. Esse “complexo de vira-latas” ignora o quanto precisamos, sim, revisitar esse período nefasto, quando tantas famílias foram despedaçadas.

Dirigido por Walter Salles, o longa aborda a história do ex-deputado Rubens Paiva, interpretado por Selton Mello, que foi sequestrado e assassinado pelos militares. A narrativa se desdobra pelo olhar de sua esposa, Eunice Paiva, vivida de forma magistral por Fernanda Torres. Eunice, que também foi presa, teve que lutar pelos direitos humanos e pela memória do marido, enquanto criava cinco filhos, entre eles Marcelo Rubens Paiva, autor do livro que inspira o filme. 

Salles conta aqui com a produção de Daniela Thomas, parceira de longa data inclusive dividindo a direção de trabalhos anteriores, e de Rodrigo Teixeira, produtor brasileiro com um currículo que inclui produções internacionais aclamadas, como A Bruxa, Me Chame Pelo Seu Nome e Ad Astra. Juntos, a equipe traz ao filme uma sensibilidade aguçada, e Salles opta por uma cinematografia que nos transporta aos anos 1970, alternando cenas íntimas da família captadas em Super 8, recurso comum da época e que traz um realismo nostálgico. No início, vemos o cotidiano simples de uma família de classe média alta, o amor e o afeto entre pais e filhos. Mas a calmaria logo dá lugar ao horror: estranhos invadem a casa, deixando apenas o silêncio e o mistério sobre o destino de Rubens. É nesse momento que o elenco brilha ainda mais, especialmente Fernanda Torres, que entrega uma atuação tocante, e sua mãe na vida real, Fernanda Montenegro, que interpreta Eunice na fase avançada da vida. Montenegro, que foi indicada ao Oscar em 1999 por Central do Brasil, volta a trabalhar com Walter Salles e entrega uma atuação minimalista e tão sublime quanto, apesar dos poucos minutos em cena, agora como a mãe de uma atriz que pode também disputar a estatueta em 2025.

O roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega foi premiado no Festival de Veneza, onde o longa acabou ovacionado por mais de 10 minutos. E, além disso, a trilha sonora de Warren Ellis entra nos momentos certos, criando um contraste interessante com os momentos de silêncio entre os diálogos. A música não surge por acaso, pontuando o filme com canções da época, como as de Caetano Veloso e outros grandes artistas.

Ainda Estou Aqui conecta-se com outros filmes brasileiros que tratam da ditadura militar, como O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, que mostra a história de um menino que precisa se adaptar à vida com os avós após o desaparecimento dos pais, e Zuzu Angel, sobre a verídica e famosa estilista que perdeu o filho Stuart, sequestrado e assassinado pelos militares e cujo destino igualmente só foi ser revelado tempos depois. Esses filmes são dolorosos lembretes das feridas profundas deixadas pelo regime, lembrando-nos que algumas famílias, como a dos Paiva, conseguiram registrar suas memórias em fotos e vídeos, enquanto muitas outras ficaram apenas com fragmentos, carregando a dor na lembrança de momentos que jamais foram registrados.

Ainda Estou Aqui não deixa um gosto doce, mas é exatamente essa a força dos grandes filmes: nos tiram do lugar comum, forçando-nos a pensar. No contexto atual, em que o autoritarismo ressurge em diversas partes do mundo, com figuras como Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil, essa obra é um alerta poderoso sobre o que uma ditadura representa de fato para uma sociedade.

E, por fim, vale lembrar que, no mesmo ano, tivemos outro grande filme que abordou o tema da ditadura: Ainda Somos os Mesmos, de Paulo Nascimento, estrelado por Carol Castro e Edson Celulari. Esse longa, que abriu o décimo Santos Film Fest, o Festival de Cinema de Santos, traz a história dos brasileiros que se refugiaram na Embaixada Argentina em Santiago, no Chile, fugindo da ditadura chilena. Filmes como esses reforçam a importância de resistir, lembrar e, acima de tudo, nunca esquecer.

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