La Bamba, a
música, está na vida de todos nós. Dificilmente alguém, em algum momento, não
dançou, em casamentos, festas retrô, aniversários, ao som do rock cantado por
Ritchie Valens. A versão gravada pelo músico transformou em rock a música
folclórica mexicana cujo primeiro registro fonográfico data de 1939, em melodia
de El Jarocho e batizada El
Jarabe Veracruzano. No Brasil, o Trio Los Angeles aparecia,
idos dos anos 1980, dia sim dia não no programa do Gugu cantando a música.
La Bamba, o filme de 1987, ajudou a popularizar
ainda mais a faixa no Brasil, graças às incansáveis reprises em Sessões da
Tarde e afins. O impressionante é trata-se de uma tragédia baseada em fatos: a
história de Valens, vítima aos 17 anos de acidente aéreo na companhia de outros
dois roqueiros em ascensão – Buddy Holly e The Big Bopper – e do piloto Roger
Peterson.
O episódio ficou conhecido por “O Dia em que a Música Morreu”
devido à música American Pie, de
Don McLean, lançada em 1972 e posteriormente regravada por inúmeros artistas a
exemplos do mexicano Francisco Colmenero e por Madonna, em adaptação pop dance para
promover o filme Sobrou
Pra Você (The Next Big Thing, 2000), sem muitos dos versos
originais.
Como aquela música me fazia sorrir
E sabia que se eu tivesse minha chance
O dia que a música morreu.”
Tragédia, ainda por cima
real, não era algo que costumávamos debater na escola durante os anos 80 e
começo dos 90. Época de filmes de ação hiperbolizados, sujeitos fortões,
exércitos de um homem só, garotas inesquecíveis. Mas em La Bamba algo me chamava atenção: eu, garoto nerd, eterno
romântico, escrevendo poesias para as meninas do colégio que sonhava, um dia,
namorar.
Era justamente o amor aparentemente impossível entre Ritchie (Lou
Diamond Phillips), de origem mexicana, e Donna Ludwig (Danielle von Zerneck),
branca, loira. Os pais dela não aceitavam a relação entre a filha e alguém de
outra etnia. Preconceito infelizmente corriqueiro até hoje. A morte do cantor
logicamente chocava. Baita final triste. Entretanto o que me dava esperança e
algum afago era o fato do amor ter existido entre eles. De superarem as
diferenças.
Valens teve carreira curta. Sua atuação pública durou cerca de
seis meses, o suficiente para deixar um tremendo legado à música, ao rock. Um
de seus hits é justamente Donna,
composto em homenagem à namorada de escola. Os demais sucessos eram Come on let’s go,
responsável por alçá-lo ao estrelato, e a canção-título do longa-metragem.
Contexto
Revisado, La
Bamba é cinebiografia competente, tradicional no formato e
serve de homenagem a tantos estrangeiros ou descendentes que tentam a sorte na
“terra das oportunidades”.
Sim, podemos citar vários nomes de artistas e esportistas de
origem latina, europeia, asiática, africana e tantas partes do mundo,
bem-sucedidos artisticamente e comercialmente nos Estados Unidos.
Mal podemos imaginar o tipo de sacrifício, de humilhações, as
negativas que lidaram, enfrentaram. O preconceito de produtores, empresários,
do próprio público ou, no âmbito pessoal, de famílias como a de Donna que não
aceitavam e não aceitam relacionamentos de pessoas de etnias, origens, classes
sociais distintas. E mesmo assim quando conseguiam ou conseguem algum destaque,
são retratados de maneira caricata, precisam fazer concessões. Muito precisou
ser realizado até Selena, Gloria Estefan, Shakira ou Jennifer Lopez explodirem,
e Alejandro Gonzaléz Iñárritu, Guillermo Del Toro e Alfonso Cuarón ganharem
suas estatuetas do Oscar.
A obra chegou aos cinemas dentro do contexto da Hispanic
Hollywood: onda de produções do final dos anos 80 realizadas – na maioria das
vezes – por profissionais de origem hispânica e retratando temas de seus
cotidianos. Exemplos são o drama O
Preço do Desafio (Stand and Deliver, 1988, de Ramón
Menéndez) e também com Lou Diamond Phillips), a comédia Born in East LA (1987,
de Cheech Marin) e a comédia dramática Rebelião em Milagro (The Milagro
Beanfield War, 1988), este dirigido por Robert Redford e com a musa brasileira
Sonia Braga. Pois é.
Ao escrever sobre Os Aventureiros do Bairro Proibido lembrei
a visão torta de produtores hollywoodianos sobre os estrangeiros, colocando, no
mesmo balaio, pessoas de nações diferentes. Consideram a mesma coisa japoneses,
sul-coreanos, chineses, etc, quando tratam dos asiáticos; etíopes, ganenses,
sul-africanos, angolanos, etc, quando tratam dos africanos; mexicanos,
equatorianos, colombianos, venezuelanos, costa-riquenhos, cubanos, brasileiros,
etc, quanto tratam dos latinos do continente americano. Sonia Braga é
brasileira, latina, não hispânica. Está aí, inclusa na Hispanic Hollywod.
Existe quem não se incomode. Um pouco de estudo, porém, não faria mal aos
produtores e parte do público.
A Hispanic Hollywood, precisamos ressaltar, não foi um ato de
inclusão dos grandes estúdios. Após o sucesso de La Bamba, perceberam
que estavam perdendo dinheiro ao não retratarem esse universo.
O filme
Logo no início presenciamos dois aviões se chocando. Abaixo está o
pátio escolar. Era um pesadelo de Ricardo Esteban Valenzuela Reyes, nome
verdadeiro de Ritchie: ele perdera realmente um amigo vítima dessa catástrofe
e, desde então, passou a ter medo de voar.
Ricardo nasceu no vale de São Fernando, subúrbio de Los Angeles. A
família tirava o sustento trabalhando na colheita de algodão em fazenda da
região. O pai era músico. Sua relação com a arte começou aos 11 anos.
Acompanhamos os passos do cantor e sua família, a mudança para Pocoima, a
escola onde conheceu Donna (Danielle von Zerneck). Vemos muito da relação entre
ele, o meio-irmão mais velho Bob (Esai Morales) e a mãe Connie Valenzuela
(Rosanna DeSoto). Família, como todas, de altos e baixos, momentos fraternos e
brigas. Bob, por exemplo, amava o irmão, mas era ressentido, sentia-se
diminuído. Assediou e engravidou Rosie (Ellizabeth Peña).
Californiano descendente de mexicanos, o diretor e roteirista Luis
Valdez foi dos pioneiros do Movimento Chicano nos anos 1960, o El Movimiento ou
movimento dos direitos civis chicano, semelhante ao Black Power dos negros.
Buscava os direitos civis para os descendentes de mexicanos nos Estados Unidos.
É um dos criadores do Teatro Campesino (dos agricultores) e desenvolveu, ainda,
o teatro e o cinema chicanos.
Profissional importante e respeitado historicamente. Conhece bem a
realidade retratada no filme. Recria a época à exatidão, auxiliado pela direção
de arte de Vincent M. Cresciman, os figurinos desenvolvidos por Sylvia
Vega-Vasquez e Yvonne Cervantes e a decoração de set de Rosemary Brandenburg.
Viajamos no tempo.
Realizou um drama sensível, intimista, a ascensão e a morte
repentina de um garoto que viveu o sonho momentaneamente. Mas La Bamba é muito
sobre as relações humanas, familiares, mostradas de maneira intensa graças ao
elenco talentoso, repleto de energia, com atores que nos sensibilizam.
O filipino Lou Diamond Phillips, apesar dos 25 anos no período (é
recorrente atores vivem personagens mais novos), mergulha em Ritchie Valens,
nos emociona, nos faz torcer, chorar.
Esai Morales, o Bob, é tão bom quanto ou até melhor, chegando a
roubar a cena. Bob apoia o irmão mais novo e às vezes se ressente. A mãe,
Connie, ganha ótima atuação de Rosanna DeSoto. Mãe que precisa dar atenção aos
dois filhos, apoiá-los, não deixar o sucesso de um apequenar o outro. E jamais
me esqueci da expressão e do choro de Danielle von Zerneck, a Donna, quando
fica sabendo da morte de Ritchie.
Curiosamente o potencial dos atores não se transformou
necessariamente em grandes carreiras – ao menos no sentido do estrelado, do
sucesso comercial. Danielle atuou pouco desde então, voltando sua trajetória
profissional para atrás das câmeras, em produções televisivas.
Lou Diamond Phillips esteve em Os Jovens Pistoleiros (Young Guns,
1988, de Christopher Cain) e a continuação Jovens Demais Para Morrer (Young
Guns II, 1990, de George Murphy), dividindo a tela com outras revelações dos
anos 80: Emilio Esteves, Kiefer Sutherland, Christian Slater. Este segundo
longa era reprisado várias vezes na TV aberta brasileira e trazia a
canção Blaze of
Glory, do Jon Bon Jovi. Lou recebeu indicações de ator
coadjuvante ao Globo de Ouro por O
Preço do Desafio (1988) e de ator em minissérie, ao Emmy,
por The Crossroads
of History (2016). Mesmo trabalhando frequentemente, as
chances são como coadjuvante em filmes B ou séries televisivas.
Elizabeth Peña, a Rosie, alcançou prêmios e trabalhou durante um
bom tempo, no cinema, na TV e na literatura. Esai se enveredou pela televisão e
viveu o mercenário Exterminador/Slade Wilson na série Titãs, baseada nos
personagens dos quadrinhos da editora DC Comics, e seria vilão em Missão
Impossível: Acerto de Contas – Parte 1 (2023).
La Bamba é e sempre será lembrado com carinho.
Vale reforçarmos algumas situações dos bastidores e da produção.
Quando vemos a versão folclórica tradicional da música-tema,
estamos presenciando os Los Lobos, responsáveis por todas as músicas de Ritchie
Valens no filme. O guitarrista David Hidalgo emprestou sua voz quando Lou
Diamond Phillips aparece cantando.
Segundo Phillips, no documentário The Day The Music Died (1999,
de Gay Roshental), a irmã de Ritchie estava no set no dia em que gravou a cena
do “sorteio”, na qual o jovem cantor ganha a chance de voar com Buddy Holly e
The Big Bopper, enquanto outro músico acaba indo de ônibus. Ela chorou
copiosamente ao presenciar as filmagens.
American Pie, a música do início do texto,
foi composta em homenagem a Buddy Holly. La Bamba vez ou outra é comparado
ao filme sobre a vida do roqueiro de óculos, A História de Buddy Holly (The
Budy Holly Story, 1978, de Steve Rach).
A obra de Valdez é mais fiel aos fatos: enquanto em A História de Buddy Holly sugere
que o ônibus quebrou e os músicos precisam pegar o avião, na verdade Holly
ficou sem roupa limpa e queria tempo para ir à lavanderia antes do show da
noite seguinte.
Tem até referência cinéfila. Quando Ritchie e Donna se beijam em
um cinema drive-in, o longa exibido é Um Corpo Que Cai (Vertigo, 1958),
clássico de Alfred Hitchcock.
“Este é um bom filme pequeno, doce e sentimental, sobre uma
criança que nunca teve a chance de mostrar suas coisas. As melhores coisas são
as mais inesperadas: os retratos da vida cotidiana, de uma mãe amorosa, de um
irmão que o ama e se ressente, de uma criança crescendo e experimentando fama e
deixando todo mundo parado no funeral chocado que sua a vida terminou
exatamente como parecia estar começando”, escreve o crítico de cinema Roger
Ebert.
O mestre da crítica de cinema não poderia ser mais certeiro. A
obra custou cerca de US$ 6,5 milhões e arrecadou mais de US$ 54 milhões.
Recebeu indicações ao Globo de Ouro em Melhor Drama e, ao Grammy, para Melhor
Música (La Bamba).
Obteve elogios da crítica especializada. Muito mais importante é ter registrado
a vida e obra, apesar de curta, de um talento meteórico e um dos pioneiros do
rock (ao lado de Buddy Holly, Eddie Cochran, Elvis Presley, Chuck Berry, Little
Richard) com uma história universal sobre família, amor, sonhos,
representatividade e superações.
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