Magia,
misticismo, humor, ação, atores carismáticos. Os Aventureiros do
Bairro Proibido (Big Trouble in Little China, 1986) faz parte da
memória afetiva de toda uma geração: crianças ou adolescentes entre os anos
1980 e 1990. Cultuado, influenciou a criação de personagens dos games, foi
citado em animações e reprisado à exaustão. Só que o filme enfrentou vários
imbróglios durante sua produção e passou longe do sucesso comercial ao estrear.
Obteve reconhecimento tardio: graças à cópia em VHS e reprises na TV aberta
arrebatou corações e mentes mundo afora. Revisto décadas depois, mantém seu frescor.
John
Carpenter penou para fazê-lo a seu modo. Havia dirigido Kurt Russel em Elvis (1979), Fuga
de Nova York (1981) e O Enigma de Outro Mundo (1982).
Fariam juntos ainda Fuga de Los Angeles, em 1996. O ator era
a única opção do diretor para viver Jack Burton, um dos protagonistas. A Fox,
no entanto, sugeriu Jeff Bridges e sondou Jack Nicholson e Clint Eastwood. Só
após a recusa de todos o cineasta conseguiu manter seu desejo inicial. Russell,
aliás, negou estrelar outro cult oitentista, Highlander,
justamente para estar neste filme.
A versão
original do roteiro ambientava a história como faroeste. O estúdio preferiu
transportar a trama para o ponto de vista contemporâneo. Ao invés de Burton montar
um cavalo, passaria a dirigir um caminhão. Os executivos pressionaram Carpenter
para antecipar a produção e as filmagens visando escapar da competição com
outro filme de temática similar: O Rapto do Menino Dourado (The
Golden Child, de Michael Ritchie). A aventura capitaneada por Eddie Murphy
estraria cinco meses e 10 dias depois e iria bem melhor nas bilheterias.
Carpenter
desejava fazer jus aos chineses, geralmente (ao lado de demais países
asiáticos) retratados de maneira caricata em Hollywood, relegados a personagens
coadjuvantes, desajeitados, que servem de escada para o protagonista branco.
Nós,
ocidentais, não raras vezes olhamos para chineses, japoneses, sul-coreanos,
vietnamitas, etc, como se fossem uma coisa só. A mesma visão preconceituosa que
coloca no mesmo espectro nigerianos, angolanos, sul-africanos, etíopes, etc. Visão
essa que, pelo prisma de alguns produtores hollywoodianos, também não distingue
mexicanos, cubanos, brasileiros, equatorianos, venezuelanos, etc.
De certa
forma, Carpenter conseguiu. Ao menos equilibrou os papéis. Russell é o
americano durão, másculo, sedutor, mas também é desajeitado, na hora da brigar
erra feio, pula fora, chega atrasado, enquanto os sino-americanos são
corajosos, sensatos, competentes, respeitosos. Só não alcançou totalmente o
objetivo porque a Fox insistiu em incluir a cena inicial: com Egg Shen (Victor
Wong) no escritório do advogado exaltando os feitos de Jack Burton. Segundo os
engravatados, o momento adicional deixou Burton “mais heroico” e, se não
estivesse no filme, Jack viraria um sidekick de Wang Chi
(Dennis Dun).
Um
pouco de história
Vale
relembrar: por décadas existiu a yellow face, artifício – tal qual
a black face para personagens negros – usado pelos produtores
para retratar pessoas de origem asiática, porém interpretados por gente branca.
Anna May
Wong, das grandes estrelas da Era de Ouro do cinema, sofreu com essa situação.
Vivia somente mulheres vingativas, sensualizadas, estigmatizadas e
coadjuvantes. Grande frustração aconteceu quando a Metro-Goldwyn-Mayer não lhe
deu o papel principal em The Good Earth (1937),
entregue a uma Luise Rainer usando maquiagem e ainda vencendo o Oscar pelo
trabalho. A minissérie Hollywood, do Netflix, homenageia
Anna e refaz a trajetória da atriz.
Este é
apenas um exemplo. Xenofobia não é rara no cinema dos Estados Unidos. A
animação Superman das matinês
cinematográficas entre 1941 e 1943 trazia vilões nipônicos extremamente
exagerados. J. Carrol Naish e Mickey Rooney usaram yellow face e
tiveram atuações caricatas respectivamente ao viverem Dr. Daka (no
seriado O Morcego, primeira aparição do Batman no
cinema, em 1943), e Mr Yunioshi, no cult Bonequinha de Luxo (Breakfast
at Tiffany’s, 1961).
Bruce Lee levantaria a bandeira, nos anos 1970, que
asiáticos recebessem o devido respeito da indústria hollywoodiana. Ele,
inclusive, perdeu o protagonismo na clássica série Kung Fu (1972-1975),
de ideia sua e que acabou estrelada por David Carradine. Nem chegou a ser
escalado, lembrado.
Graças aos
filmes de artes marciais, ou de kung fu como eram popularmente chamados, os
atores e atrizes de origem asiática passaram a receber oportunidades melhores.
Os
Aventureiros do Bairro Proibido é
herdeiro desse período. Traz elementos do gênero wuxia do
cinema de Hong Kong (mescla de fantasia e artes marciais), bastante conhecido
pela obra dos irmãos Shaw, com a costumeira ação dos anos 1980.
Acaba sendo
muito mais uma fantasia do que sobre artes marciais. Outras produções pops
produzidas do lado de cá do Atlântico são assim: Mandarim, o inimigo do Homem
de Ferro da Marvel, e até o desenho animado As Aventuras de Jackie
Chan apresentam conteúdo parecido, do mistério que esconde magia,
sobrenatural, crenças bem antigas.
O
filme
Jack Burton
(Russell) chega a São Francisco e reencontra Wang (Dun). Os dois e mais alguns
sujeitos passam a noite jogando e apostando. Quando perde uma aposta, Wang diz
que, antes de pegar o dinheiro no restaurante do tio quitar a dívida com o
amigo, precisa ir ao aeroporto buscar o amor de sua vida, Miao Yin (Suzee Pai).
Durante cinco anos ele ralou, trabalhou muito para conseguir trazê-la da China.
A moça é
sequestrada por uma gangue do Chinatown para ser vendida a Lo Pan (James Hong),
antigo guerreiro de 2 mil anos (!!), vítima séculos atrás de maldição
perpetrada pelo imperador soberano Qin Shihuang.
Lo Pan é um
ser incorpóreo e, embora vez ou outra possa habitar um corpo decrépito, deve
ser casar com uma mulher de olhos verdes e, finalmente, voltar a ter um corpo
de carne e osso. Mantém empresa de fachada envolvida no submundo do crime.
Na
tentativa de salvar a moça, Jack e Wang recebem a ajuda da advogada Grace Law
(Kim Kattrall) e do guia turístico Egg Shen (Victor Wong), especializado em
magia e conhecedor da história do místico vilão.
Aventureiros
do Bairro Proibido parece
filme B décadas depois. Mas tinha bom orçamento para o meio dos anos 1980 e uso
de efeitos visuais razoáveis. O roteiro de Gary Goldman, David Z. Weinstein e
W.D. Richter dá escorregadas aqui e ali e algumas situações são completamente
nonsenses.
Sequestrada,
Miao Yin sequer esboça algum tipo de reação. Mais tarde, pouco antes do
casamento de Lo Pan, ela e Grace Law estão em estado catatônico, meio
hipnotizadas. Por que apenas a segunda consegue abrir os olhos? Questões que
levei comigo.
Por outro
lado, sempre me encantaram os corredores repletos de estátuas de Buda, as
portas falsas, os subterrâneos misteriosos, os ornamentos e figurinos
coloridos.
Certos
filmes nos impactam. Trazem momentos e imagens que carregamos por toda a vida,
principalmente se foram vistos quando somos crianças.
Tal
qual Melancolia (2011, de Lars Von Trier)
me faria olhar sempre para o céu, a lua, tanto o prédio da empresa de Lo Pan e
o edifício onde a Yakuza mantém sede em Justiceiro (The
Punisher, 1989), até hoje me fazem questionar certos arranha-céus corporativos.
Em Santos mesmo, cidade onde vivo, há um imenso: e vivo me perguntando se por
trás de tantos corredores vazios, andares aparentemente inutilizados, há algo
escondido, sinistro.
O que
deveria ser o esgoto de São Francisco é um universo à parte, com monstros,
fumaça, caminhos tortuosos. Carpenter consegue criar uma fábula, nos
transportar para um mundo muito particular com suas regras, lendas e criaturas
magníficas.
E reuniu
elenco interessante. Russel pensou em não aceitar o convite. Vinha de
fracassos. O diretor bateu o pé. Queria o astro, que emprega energia a Burton,
metido a garanhão, fanfarrão.
Kim
Cattrall faz de Grace alguém segura, atrevida, que não se deixar inicialmente
levar pelos galanteios do herói. Há tensão sexual entre eles, a química existe.
Brilhava dois anos após em Loucademia de Polícia (Police
Academy) e muito antes de seduzir marmanjos na série Sex and The
City.
Dennis Dun
– escalado após Jackie Chan não ser contratado – cria um Wang durão, mas que se
derrete pela amada e extremamente confiante e habilidoso nas artes marciais.
E os
veteranos James Hong e Victor Wong se divertem muito em seus respectivos
personagens. O primeiro tem carreira maravilhosa e repleta de trabalhos dos
mais variados: começou nos anos 1950, ainda na Era Dourada do cinemão, e marcou
presença em Blade Runner (1982), The Big
Bang Theory e dublou em Mulan e Kung
Fu Panda, entre outros. Assume o tom galhofa de Lo Pan, típico vilão
excêntrico e tarado. Victor estaria também em Sete Anos no Tibet e O
Último Imperador e não deixa nada a dever ao algoz em tom
galhofeiro. A cena em que Egg Shen e Lo Pan duelam ao estilo videogame é pura
tiração de sarro. James e Victor retornariam em O Rapto do Mundo
Dourado, ao lado de Peter Kwong, a Chuva dos Três Temporais.
Somente a
americana Suzee Pai, figura central da trama, praticamente entra muda e sal
calada. Posou para a Penthouse em 1981, atuou em algumas produções e estaria
em Rambo (First Blood, 1982), entretanto sua cena
acabou cortada. Teve carreira curta. O último trabalho creditado é de 1993.
Do mesmo
jeito que Carpenter busca referências cults, seu filme acabou influenciando
produtos variados da cultura pop.
Relâmpago,
um dos três grandalhões, inspirou a criação do visual de Raiden, e Lo Pan seria
Shang Tsung, do jogo Mortal Kombat.
O filme
ganharia paródia no episódio A Chinatown Ghost Story,
das Tartarugas Ninjas, na animação de 2014.
Orçado em
US$ 25 milhões, estreou somente no 12º lugar, atrás do péssimo Psicose
II/ (oitavo colocado) e do líder Karate Kid II: A Hora
da Verdade Continua, em sua terceira semana nos cinemas. Faturou pouco
além de US$ 11 milhões. Carpenter culpava a Fox por ter priorizado Aliens,
O Resgate (de James Cameron), lançado no mesmo mês.
Responsável
pela trilha sonora típica da época, cheia de sons de teclados e sintetizadores
e que dá bom ritmo à ação, Carpenter desistiu de servir seu talento aos grandes
estúdios e voltaria ao cenário independente.
Os
Aventureiros do Bairro Proibido é
o tipo de filme-retrato de sua época que encontrou o público certo com o passar
do tempo. Continua uma experiência divertida e prazerosa.
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