O Grande Dragão Branco (Bloodsport, 1988)

 




Nos anos 1980 era costume reprisarmos, nos intervalos das aulas, algumas cenas de filmes que amávamos. O preferido: Karate Kid: A Hora da Verdade (1984). Daniel nos representava. Sujeito inicialmente indefeso, sofria bullying. Dava a volta por cima, calava os valentões, ficava com a garota. Éramos apaixonados pela Ali (Elizabeth Shue). Mas talvez o que nos aproximasse mais do filme era o fato da história acontecer na escola. Nos espelhávamos neles. Éramos fãs de Rocky Balboa, mas não repetíamos tanto os socos trocados entre ele e Apollo, ou Clubber Lang, ou Drago. Porém, adorávamos representar os golpes dados por Frank Dux (Jean-Claude Van Damme) em O Grande Dragão Branco. Provavelmente ficávamos encantados pelos chutes giratórios, as artes marciais.

Para alguém de 8, 10, 12 anos, os defeitos de um filme tendem a passar despercebidos. Adorava Superman III (1983) e Superman IV: Em Busca da Paz (1987), Mestres do Universo (1987), American Ninja (1985), etc, etc. É preciso contextualizar. Estávamos longe de ter TV a cabo, internet. Globo e SBT, ou TVS para os mais antigos, davam destaque para os filmes exibidos “pela primeira vez na televisão”.

Noite de Tela Quente era evento familiar: todos reunidos em frente ao televisor. O SBT fazia promoções durante as transmissões. Lembro que, a cada retorno de intervalo, e emissora colocava uma letra em algum canto da tela e o espectador precisava ficar atento para anotá-la. E depois enviar pelo correio a carta com as cinco letras mostradas e concorrer aos brindes.



Dos casos mais curiosos aconteceu com Rambo. O SBT promovia Rambo: Programado Para Matar (1982), o primeiro da franquia, o original, para uma sexta-feira. A Globo esticou o horário da novela. A emissora de Silvio Santos então deixou a imagem do filme estática dizendo que a exibição começaria assim que acabasse a novela na concorrente.

Como a velocidade de informação era completamente diferente da atualidade e os filmes demoravam para chegar à TV, fomos acostumados a achar atores como Dolph Lundgren, Steven Siegel e Michael Dudikoff e, o próprio Jean-Claude Van Damme, grandes astros de Hollywood, do primeiro time. Nunca foram (Van Damme chegou perto). Vieram todos no embalo dos sucessos de ação estrelados por gente super-musculosa – os exércitos de um homem só, com Stallone e Arnold Schwarzenegger à frente – e de artes marciais, levados ao grande público por Bruce Lee na década anterior.

A grande responsável por boa parte desses quase filmes B, apresentados no Brasil como grandes lançamentos, é a Cannon, retratada pelo diretor Mark Hatley no documentário Electric Boogaloo: The Wild, Untold Story of Cannon Films (2014), exibido no Festival do Rio anos atrás. Comandada pelos irmãos Menahem e Yoram Globus, a produtora “presenteou” o público com tramas divertidas, nonsenses, estranhas e memoráveis para quem foi criança naqueles anos. Para dar uma ideia, alguns dos lançamentos da empresa foram: Desejo de Matar II (1982), com Charles Bronson, O Último Americano Virgem (1982), As Minas do Rei Salomão (1985), Comando Delta (1986, com Chuck Norris), Cobra (1986, com Stallone), Capitão América (1990) – isso mesmo, o Sentinela da Liberdade enfrenta um Caveira Vermelha italiano! -, os citados American NinjaMestres do UniversoSuperman IV: Em Busca da Paz O Grande Dragão Branco.



Kumite

O Grande Dragão Branco pode ser considerado, exagerando talvez, o segundo grande papel de Jean-Claude Van Damme. O ator belga havia estrelado Retroceder Nunca, Render-se Jamais (1986). Na história mostrou seus dotes atléticos ao viver o algoz de Jason, jovem estudante de caratê que aproveita as lições com o espírito de Bruce Lee para encher de chutes e socos a máfia soviética. O longa virou cult em vídeo. Dois anos depois, Van Damme interpretaria um de seus personagens mais marcantes, Frank Dux.

Com extensa carreira de diretor-assistente, inclusive de grandes produções como O Poderoso Chefão: Parte II (1974) e O Segredo do Abismo (1989), o californiano Newt Arnold (1922-2000) só havia dirigido dois longas de terror, Mentes Criminosas (1962) e Blood Thirst (1971) – curiosidade: fez ponta atuando no cult juvenil Os Goonies (1985).

Para O Grande Dragão Branco, junto aos roteiristas Sheldon Lettich (Rambo II e diversos filmes com Van Damme), Christopher Cosby e Mel Friedman (assistente de edição da série Breaking Bad), pegou emprestadas e mesclou as lições aprendidas com Operação Dragão (1973), Rocky. Um Lutador (1976) e Karatê Kid (1984).



O militar Frank Dux decide deixar o exército para lutar em Hong Kong, num torneio de artes marciais clandestino chamado Kumite. Lutadores de várias partes do mundo participam da competição, que pode levar à morte. Tipo um MMA mais hardcore. Dois agentes do serviço secreto (vividos por Norman Burton, 1923-2003, e um jovem e iniciante Forest Whitaker) dos EUA partem em seu encalço, já que o governo “investiu” em suas capacidades. Sua decisão em arriscar a vida na Ásia é para honrar seu shidoshi, que encontra-se doente, Senzo Tanaka (Roy Chiao, 1927-1999). Pelo caminho, o protagonista se envolverá com a intrépida repórter Janice Kent (Leah Ayres), capaz de quase tudo para conseguir a grande reportagem, e fará amizade com o conterrâneo fanfarrão Ray Jackson (Donald Gibb).

Logo nos primeiros minutos nos deparamos com uma série de clichês: lutadores são mostrados da maneira mais caricata possível, racista, que hoje despertariam discussões acaloradas nas redes sociais. O africano tem “estilo” de luta imitando macaco, o brasileiro no meio da floresta, etc, etc. Tudo acompanhado pela trilha sonora exagerada e tipicamente oitentista de Paul Hertzog.

Conhecemos a trajetória de Dux em flashbacks, os primeiros contatos com as artes marciais. O Tanaka de Roy Chiao é um Mr. Miyagi mais sádico e sem o carisma de Pat Morita. Ele só poderia ensinar um descendente de sangue, mas rompe a tradição para lecionar um ocidental. O ator que faz Dux na infância, Pierre Rafini, é dos mais inexpressíveis da história. A repórter Janice Kent (seria o sobrenome referência ou homenagem ao Clark, de Superman?) é uma Lois Lane mais atrevida, disposta a conseguir informações mesmo que precise sair com um apostador. Com Dux é diferente, ela se apaixona. E o sentimento parece ser recíproco.



O Kumite é caso à parte. O torneio acontece dentro da Cidade Murada de Kowloon, emaranhado de prédios densamente povoado que virou antro de traficantes e bandidos de todos os tipos. Lembro que, em Santos, havia o Bar Anhembi, esquina do Canal 4 com a avenida da praia. Quando íamos ao banheiro do boteco, costumávamos dizer que o corredor lembrava o mesmo corredor para chegar ao Kumite, tamanha a sujeita, os cabos e fios expostos. Quando Frank, Jackson e alguns locais adentram a Cidade Murada temos uma das câmeras subjetivas (que nos torna a visão do personagem) mais confusas do cinema. Repare como pessoas simplesmente desaparecem.

Treinando e lutando, Van Damme mostra todo o seu talento ou a falta dele: do espacate, movimento ginástico no qual abre as pernas formando 180 graus, aos chutes giratórios, até a cena em que Dux fica sem enxergar, um clássico da má atuação. Haverá momentos de hesitação e quase derrota à lá Rocky, tem a trapaça (herança de Karate Kid e outros) feita pelo oponente, aqui um coreano, Chong Li, interpretado por ninguém menos que o chinês Bolo Yeung. O vilão traz frases icônicas, chegando a repetir Bruce Lee, com quem trabalhou em Operação Dragão: “tijolo não revida”. Outra célebre: “Você quebrou meu recorde. Agora vou quebrar você igual quebrei o seu amigo”.

Durante os letreiros somos informados que a história é baseada na vida do verdadeiro Frank Dux. Soldado do exército americano, teria quebrado todos os principais recordes do Kumite. Ele serviu de consultor e treinou atores para o filme e, diz, é pioneiro ao desenvolver o Dux Ryu Boxe nos EUA. Acontece que jamais foi comprovada a existência do Kumite e há quem ache o sujeito um charlatão de marca maior. Afinal, como os organizadores conseguiam medir a velocidade de golpes, etc?



Muitos lutadores foram interpretados por profissionais da dança e o moçambicano Paulo Tocha, que faz o lutador brasileiro Paco (da troca de chutes no quadril com Van Damme em uma das principais lutas do filme), viraria lutador profissional e o primeiro estrangeiro a vencer um combate na China comunista.

Incrivelmente, O Grande Dragão Branco custou pouco além de US$ 1 milhão e rendeu dez vezes mais. Ganhou três continuações sem a presença de Van Damme, produzidas para o mercado de home vídeo, estreladas por Daniel Bernhardt e exibidas no Brasil pela Rede Bandeirantes.

Mas, como escrevi lá no início do texto, na infância temos dificuldade em diferenciar o que é bom ou ruim e a memória afetiva nos faz crer, durante muito tempo, que vimos grandes filmes. As brincadeiras na escola, na rua, valem a lembrança. Van Damme viveu altos e baixos na carreira, usou drogas, ficou excitado ao vivo dançando com Gretchen no programa do Gugu, soube rir de si mesmo. Melhor exemplo é a série Jean-Claude Van Johnson (2017), paródia resumo dos filmes nos quais trabalhou.
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O Grande Dragão Branco
Bloodsport
EUA. 1988.
Direção: Newt Arnold.
Com Jean-Claude Van Damme, Donald Gibb, Bolo Yeung, Roy Chiao, Leah Ayres, Forest Whitaker, Norman Burton.
92 minutos.




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