Guillermo
Del Toro aprendeu direitinho a lição em sua filmografia pontuada por
personagens deslocados, a princípio assustadores, porém complexos, de bom
coração. Citando alguns: A Espinha do Diabo (2001), Blade II (2002), Hellboy
(2004) e a continuação, O Exército Dourado (2008), O Labirinto do Fauno (2006),
seguem e melhoram a cartilha. São todos filmes ora assustadores, ora poéticos,
belos, sensíveis. Nos momentos assustadores, o mal não está propriamente nas
criaturas fantásticas, mas em seres humanos inescrupulosos, doentios,
psicopatas. Os monstros, as criaturas, servem como observadoras do nosso
comportamento errante, de altos e baixos. A Forma da Água é o ápice dessa
trajetória cinematográfica praticamente perfeita em conteúdo e técnica. Eleva
em grandes doses a poesia, a beleza e a sensibilidade das histórias anteriores.
Traz um vilão, de objetivos compreensíveis e igualmente detestáveis.
Sally
Hawkins, a irmã de Cate Blanchett em Blues Jasmine (2013), de Woody Allen,
ganha personagem à altura do talento mostrado várias vezes. Interpreta Elisa
Esposito. Sua rotina consiste em acordar, se masturbar durante o banho,
preparar o café, levar algum quitute ao vizinho solitário Giles (Richard
Jenkins) e pegar o ônibus rumo ao trabalho. É faxineira nas madrugadas de uma
instalação militar. Durante a labuta, costuma trocar ideias e gestos com Zelda
(Octavia Spencer). As noites seguem normais, até a protagonista descobrir e se
apaixonar por uma criatura anfíbia, capturada na América do Sul e mantida em
cativeiro pelos militares, sob o olhar de Richard (Michael Shannon).
Cinema
é espelho do mundo. A Forma da Água chegou justamente quando Hollywood denuncia
o assédio. Pouco tempo depois do debate sobre o racismo. Há quem diga: “o mundo ficou
mais chato, o Oscar estar mais chato, somente filmes de temática social são
premiados, blá, blá, blá”.
O
longa não lidera as indicações e é favorito - somente - por ser uma ode à
diversidade e possuir um diretor mexicano, uma protagonista mulher e muda cujos
melhores amigos são um idoso gay e uma mulher negra e que se apaixona por
alguém misto de peixe e homem. Mais de 60 prêmios e 200 indicações (13 aos
Academy Awards) não são à toa. Lidera e é favorito por colocar o dedo na(s)
ferida(s) sim, e por ser uma maravilha de filme, muito bem dirigido, escrito
pelo próprio Del Toro e Vanessa Taylor (produtora e roteirista de séries como
Game of Thrones), lindamente fotografado por Dan Laustsen (que trabalhou com o
cineasta no anterior A Colina Escarlate, 2015), pela belíssima reconstituição
de época no design de produção por Paul D. Austerberry, Shane Vieau e Jeffrey
A. Melvin, e os figurinos concebidos por Luis Siqueira. A trilha sonora
composta pelo experiente Alexander Desplat (Oscar pela música de O Grande Hotel
Budapeste) é um espetáculo à parte.
Tudo
orquestrado por Del Toro, o único do trio de grandes diretores mexicanos
contemporâneos a não ter recebido a estatueta dourada – os outros são Alfonso
Cuarón (Gravidade) e Alejandro González Iñárritu (duas vezes: Birdman e O
Regresso). Está mais do que na hora. Assim como Damien Chazele e La La Land
(2016), o diretor homenageia filmes e séries clássicos, de Carmen Miranda e
Bonanza aos musicais e insere um lindíssimo cinema de rua. Curiosamente,
naqueles tempos o dono se queixava do pouco público. Homenageia, acima de tudo,
O Monstro da Lagoa Negra. Tanto o cult de 1954 como A Forma da Água apresentam seres
surgidos em solo sul-americano. Inspiração em Ipupiara ou Negro DÁgua, figuras
do folclore brasileiro? A maneira como dirige é poética. Os primeiros encontros
entre Elisa e o anfíbio remetem ao “balé” de Ann (Naomi Watts) e King Kong, no
gelo, da superprodução dirigida por Peter Jackson em 2005.
A
cereja do bolo é o elenco. São personagens complexos. Que merecem artistas
capazes de incorporar essa complexidade. Sally Hawkins cativa e encanta no
gestual, nos olhares, nas expressões. Richard Jenkins retrata os anseios
contidos de alguém que não pode expressar os sentimentos com medo do
preconceito alheio. Octavia Spencer traz as caras e bocas e o carisma costumeiro.
Michael Shannon tem a vilania e a dualidade do sujeito aparentemente pai de
família tradicional. Transa com a esposa pensando em outra. É misógino. Ao
mesmo tempo busca a aprovação do chefe. Representa a hipocrisia de nossa
sociedade e o olhar do homem branco heterossexual à diversidade: julga, ofende,
agride o que não entende. Michael Stuhlbarg vive o cientista e agente duplo.
Tal qual sua atuação em outro longa de destaque na temporada, Me Chame Pelo Seu
Nome, tem menor e marcante aparição.
Raras
vezes me apaixonei à primeira vista por um filme. Nos últimos anos, O Grande
Hotel Budapeste, La La Land e, agora, A Forma da Água. Vi, revi, me emocionei
em ambas as ocasiões e pretendo ver mais vezes. Obrigado, Del Toro.
FIcha técnica:
Título no Brasil: A Forma da Água
Título original: The Shape of Water
Ano de lançamento: 2017
País de produção: Estados Unidos
Diretor: Guillermo del Toro
Roteirista: Guillermo del Toro e Vanessa Taylor
Diretor de fotografia: Dan Laustsen
Editor: Sidney Wolinsky
Trilha sonora: Alexandre Desplat
Tempo de duração: 123 minutos
Elenco:
- Sally Hawkins (Elisa Esposito)
- Michael Shannon (Richard Strickland)
- Richard Jenkins (Giles)
- Octavia Spencer (Zelda Fuller)
- Doug Jones (A Criatura)
- Michael Stuhlbarg (Dr. Robert Hoffstetler)
- David Hewlett (Fleming)
Principais prêmios e indicações:
- Vencedor do Oscar de Melhor Filme, Melhor Diretor (Guillermo del Toro), Melhor Design de Produção e Melhor Trilha Sonora Original em 2018.
- Indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Atriz (Sally Hawkins), Melhor Ator Coadjuvante (Richard Jenkins), Melhor Atriz Coadjuvante (Octavia Spencer), Melhor Roteiro Original e Melhor Edição de Som em 2018.
- Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza em 2017.
- Vencedor do Globo de Ouro de Melhor Diretor (Guillermo del Toro) e Melhor Trilha Sonora Original em 2018.
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