Por André Azenha
Perdi a conta das vezes que vi Ponyo: Uma Amizade que Veio do Mar (Gake no ue no Ponyo, 2008). A grande maioria foi em sessões dos projetos de formação de público que realizava e realizo em escolas, ONGs, creches, associações de bairro. Sempre fez sucesso, principalmente entre as crianças.
Elas estão acostumadas à Disney, à Pixar, super-heróis. Independentemente do local onde moram, conferem os grandes sucessos: pela televisão ou outros meios. Não cabe julgar. Todo mundo merece acesso à cultura. Para fugir do óbvio, procuro optar por produções acessíveis e, ao mesmo tempo, capazes de transcender, inspirar, tirar o espectador do lugar comum.
Não cabem filmes “cabeças” demais (ainda que deteste essa expressão). Aliás, optar por filmes assim chega a ser cruel e, de certa maneira, elitista pela parte de quem programa projetos de cinema em comunidades.
O público é bombardeado diariamente por informações dos blockbusters, dos principais lançamentos do circuito. Ficam com vontade de conferi-los. Deveriam poder assisti-los. Empurrar, logo de cara, produções independentes, curtas-metragens que ninguém viu direito, acaba impactando o público de maneira contrária: ao invés de “formar”, acaba espantando a plateia.
“Catequização” arrogante, pretenciosa, como se o curador estivesse numa bolha e não entendesse que cada projeto possui necessidades diferentes. Ver filmes é um costume desenvolvido pelo prazer. É preciso envolver as pessoas, fazer das sessões algo agradável, especialmente para quem pouco tem chance ou simplesmente não consegue ir ao cinema. Essa relação entre quem escolhe e apresenta os filmes e o público, alunos, etc, é estreitada aos poucos, desenvolvida na prática, é uma troca de aprendizado.
Das mais de cem exibições que participei, duas animações são certeiras ao desenvolver o prazer nas crianças sem cair nas obviedades do cinemão: são Ponyo: Uma Amizade que veio do Mar, do japonês Hayao Miyazaki, e Kiriku e a Feiticeira (Kirikou et la sorcière, 1998) do francês Michel Ocelot. Ambos são aventuras estreladas por crianças, abordam relações familiares, possuem humor e trazem mensagens ambientais. Mistura perfeita para os pequeninos ainda na pré-escola ou nos primeiros anos do ensino fundamental.
A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001), por exemplo, do mesmo cineasta fundador do famoso Estúdio Ghibli, não agrada tanto apesar de ser obra-prima vencedora do Oscar. Tem personagens que tendem a assustar e é uma história, digamos, mais complicada.
Ponyo não é o filme mais incensado do diretor e desenhista responsável por animações seminais que influenciaram realizadores da Disney, da Pixar e do mundo inteiro. Recebeu 12 prêmios e 19 indicações ante 57 prêmios e 30 indicações do citado A Viagem de Chihiro. Princesa Mononoke (Mononoke-hime, 1997) e Meu Amigo Totoro (Tonari no Totoro, 1988) e não alcançaram tanto prestígio em premiações, mas são mais lembrados nos guias de cinema. Estes três são os mais citados por críticos e historiadores do cinema. Totoro, aliás, virou o símbolo do Ghibli. Aparece no início de todas as obras da empresa tal qual a luminária do curta-metragem Luxo Jr. (1986) surge nas produções da Pixar.
Hayao Miyazaki é artista na acepção da palavra, de imaginação ímpar, mágico, poeta visual, sensorial. Seus filmes são como se estivéssemos presenciando sonhos transportados para a tela. Mais ou menos como Lars Von Trier costuma conseguir fazer em seus longas-metragens. Ok, muitos dos filmes do dinamarquês soam mais como pesadelos.
O diretor japonês, conforme podemos ver durante os quatro episódios do documentário 10 Anos com Hayao Miyazaki, manteve-se trabalhando à moda antiga. Desenha e pinta à mão. As histórias são concebidas a partir do desenho e da pintura, de pequenos esboços para só depois terem os roteiros desenvolvidos.
Suas tramas não abrem mão de apresentar costumes japoneses, a cultura, a história do país (a Segunda Guerra – vale lembrar que o Japão é a única nação do mundo atacada com bombas atômicas), e a relação da população com a natureza e os tsunamis, terremotos.
Ao mesmo tempo são universais: podem ser sentidas, amadas, debatidas e entendidas em qualquer parte do planeta.
Tecnicamente são maravilhosas: repletas de cores bem escolhidas, sofisticadas em movimentos e ângulos de câmera, fluídas e orgânicas em primeiro plano e ao fundo, reunindo, por vezes, dezenas de personagens na mesma cena. Um passo além da pioneira série do Superman dos irmãos Fleischer exibidas nas matinês cinematográficas entre 1941 e 1943. Cenas essas que duram segundos e chegam a levar meses para serem produzidas. Trabalho hercúleo, digno, admirável, artesão.
Suas animações geralmente trazem garotinhas ou jovens mulheres e sempre a figura da mãe. Sua mãe precisou ser acamada jovem. Durante seu crescimento Miyazaki queria a presença materna em diversas atividades. Sentiu falta obviamente. Considera-se culpado por não ter estado mais próximo ao filho, Goro, quando pequeno.
Ponyo reúne tudo isso. O produtor e um dos sócios do estúdio Ghibli, Toshio Suzuki, não gostou do longa. Argumentou que a animação repetia temas e situações de produções da empresa. Não está errado. Mas o Ghibli, e especialmente Miayazaki, estão naquela turma que produz bastante e quase nunca erra a mão. Que mesmo em trabalhos menos inspirados, estão acima da média. Entram na lista a Pixar, Woody Allen. É clichê, mas é verdade.
À época do lançamento, cheguei a ler resenhas de colegas criticando negativamente o filme. Eu amei. Fui chegar a opinião do maior de todos os críticos, aquele que jamais deixou de amar ver filmes (enquanto alguns são meros “caçadores de erros”): Roger Ebert. “Há uma palavra para descrever Ponyo, e essa palavra é mágica. Este trabalho poético, visualmente de tirar o fôlego, do maior de todos os animadores, tem um encanto tão profundo que adultos e crianças serão tocados”, afirmou o poeta da crítica cinematográfica sobre o poeta das animações.
Conhecemos a protagonista-título (Yuria Nara): um peixinho-dourado de rosto humano. Parece ser a mais velha de dezenas e dezenas de irmãs. Quer libertar-se da vigia do pai Fujimoto (George Tokoro), humano que decidiu viver no oceano e trabalha para cuidar do equilíbrio da natureza. Ponyo escapa e vai parar à margem do mar e conhece o garotinho de cinco anos de idade, Sôsuke (Hiroki Doi). Do encontro surge a amizade. Ponyo quer transformar-se em humana. Sua ausência no mar, no entanto, gera um desequilíbrio na natureza e a cidade costeira acaba sendo inundada. Com o tempo ela vai retornando à forma original. E só o amor verdadeiro do menino poderá deixa-la viver em terra.
Ponyo pode ser considerada antecessora de Moana: de existência intrinsicamente ligada ao mar, à natureza, é independente, tem atitude, quer desbravar o mundo e abdica de ser princesa. Empoderada, é ela quem toma a dianteira e declara amor a Sôsuke. A mãe da peixinho é ninguém menos que a Mãe Natureza, Rainha do Mar, conhecida como Iemanjá pelas pessoas do candomblé e da umbanda. Por outro lado, é herdeira das famosas princesas dos contos de fada e da Disney: só o amor verdadeiro resolverá a situação igual vimos em tantos contos, livros, filmes.
O relacionamento entre Ponyo e Sôsuke é puro, nasce da amizade, da afinidade, tipo Vada (Anna Chlumsky) e Thomas (Macaulay Culkin) em Meu Primeiro Amor (My Girl, 1991).
Acompanhamos situações corriqueiras como Risa (Tomoko Yamaguchi), e mãe de Sôsuke, convencendo as crianças a se alimentarem. A refeição é o lámen, típico prato japonês. Risa cuida da casa sozinha, é forte, corajosa (como Miyazaki enxergava a mãe), enquanto o marido está distante, trabalhando em navio. Está aí o pai ausente, reflexo da culpa sentida por Hayao em relação ao filho.
Na cidade costeira vemos uma população preparada para desastres naturais, algo recorrente na história japonesa. Quando a água invade, todos se ajudam. Há até cena de ação: aquela em que Risa e Sôsuke aceleram o carro para tentar voltar para casa, localizada no alto da colina, enquanto as ondas do mar furiosamente seguem em direção à costa. Em Aquaman (2018) há uma sequência igual.
Compreender a Terra como um organismo unificado, onde tudo está interligado vem de diversas crenças e veríamos algo assim em Avatar (2009). Ponyo pode ser considerada também uma mensageira, um anjo, pois detém o poder de curar as pessoas, consertar itens variados conforme o toque e o desejo. Lembram da criatura de A Forma da Água (The Shape of Water, 2017) ou tantos personagens existentes na cultura pop? Um dos fatores que admiro na arte das animações japonesas é justamente esse intercâmbio: influencia a cultura ocidental e é influenciada, aprofundando e melhorando ideias, características.
A linda trilha sonora de Joe Hisaishi nos leva junto à cada situação, momento, sentimento, sensação.
Tantas qualidades renderam tratamento de gala na concepção da versão em inglês. Os produtores para o lançamento nos Estados Unidos foram John Lasseter (o cara da Pixar que realizou este trabalho por amor e não por dinheiro), Kathleen Kennedy (da Lucas Film e saga Star Wars) e Frank Marshall (franquia Jurassic World, Jason Bom, etc). Entre os dubladores, estrelas do quilate de Liam Neeson (Fujimoto), Cate Blanchett (Mãe Natureza), Matt Damon (Kôichi), Tina Fey (Lisa) e famosos para atrair público como Frankie Jonas (Sôsuke), dos Jornas Brothers, e Noah Cyrus (Ponyo), a irmã mais nova de Miley Cyrus.
Custou cerca de US$ 34 milhões e rendeu mais de US$ 200 milhões, segundo o IMDB. Recebeu dois prêmios e concorreu ao Leão de Ouro no Festival de Veneza.
Pode não ser o ápice do Ghibli ou de Miyazaki. Entretanto, nunca deixa de nos encantar e elevar nossas vidas.
Ponyo. Uma Amizade que Veio do Mar
Gake no ue no Ponyo
Japão. 2008.
Direção: Hayao Miyazaki.
Com dublagem original de Yuria Nara, Hiroki Doi, George Tokoro, Yûki Amami, Tomoko Yamaguchi, Kazushige Nagashima.
101 minutos.
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