A memória afetiva nos prega peças. Filmes que amávamos na infância e na adolescência, quando revistos anos mais tarde perdem o encantamento. Alguns continuam divertidos. Outros até soam melhores. No meu caso, que fui criança e adolescente respectivamente nas décadas de oitenta e noventa, não faltam exemplos dessas três situações.
Aventureiros do Bairro Proibido (Big Trouble in Little China), de 1985, segue diversão agradável. As qualidades cinematográficas de produções como Ruas de Fogo (Streets of Fire) e Karatê Kid: A Hora da Verdade (The Karate Kid), ambos de 1984, são melhor aproveitadas ao passar da idade.
Há casos que bate aquela “vergonha alheia”. Tipo American Ninja (1985) e tantos outros produzidos pela Cannon – “especializada” em criar “sucessos” a partir de orçamentos mínimos e copiando ideias de filmes já existentes. São verdadeiros guilty pleasures, ou prazeres que nos dão culpa. Coisas que sabemos serem ruins, pavorosas, e ainda assim gostamos, nos divertem.
Três dos meus guilt pleasures são Falcão, O Campeão dos Campeões (Over the Top, 1987), com Sylvester Stallone, O Grande Dragão Branco (Bloodsport, 1988), com o belga Jean-Claude Van Damme e O Justiceiro (The Punisher, 1989), com o sueco Dolph Lundgren. Os dois primeiros são da Cannon. O Justiceiro, não. Mas poderia ser. E Lundgren estrelou para a produtora dos primos israelenses Menahem Golan e Yoram Globus Mestres do Universo (Masters of the Universe), o filme do He-Man que praticamente não tem nada sobre o… He-Man!
Quando crianças, ou adolescentes, tendemos a colocar no mesmo balaio filmes parecidos, ou de temática similar, porém de qualidades bem distintas.
Exemplos:
Rocky, Um Lutador (1976) e o citado Falcão, o Campeão dos Campeões.
RoboCop: O Policial do Futuro (RoboCop, 1987), O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (Terminator 2: Judgment Day, 1991), e este Soldado Universal (Universal Soldier).
Soldado Universal pode enganar: não é um filme da Cannon. Recebeu orçamento relativamente decente para a época: US$ 23 milhões. Traz tratamento bem acabado, dois atores que nunca chegaram a ser propriamente do primeiro time do cinema americano, mas eram relativamente conhecidos. Possuía diretor em ascensão: competente para cenas de explosão – o alemão Roland Emmerich, que faria blockbusters de sucesso como Independence Day (1996) e O Dia Depois de Amanhã (2004). A produtora era a Carolco, da bem-sucedida franquia Rambo.
Comercialmente Soldado Universal não chegou a ser fiasco. Arrecadou US$ 36 milhões e gerou franquia repleta de continuações duvidosas para home vídeo e cinema. Praticamente todas chegaram ao Brasil diretamente em DVD, se chegaram.
Revisto décadas depois, entretanto, soa verdadeira colcha de retalhos, de ideias e clichês de outros êxitos de bilheteria.
A empresa originalmente contratou Emmerich, recém-saído de Estação 44: O Refúgio dos Exterminadores (Moon 44, 1990), e o roteirista Dean Devlin para um drama de ficção científica que reuniria Sylvester Stallone e Kim Basinger, dois dos mais famosos atores dos anos 1980. A história seria ambientada no futuro em trens de alta velocidade, onde monstros geneticamente criados se soltam e atacavam os passageiros. Emmerich era o segundo diretor envolvido, após Ridley Scott desistir graças às divergências com o produtor Joel Silver.
Emmerich e Devlin também enfrentaram problemas com os executivos, não tiveram a liberdade criativa almejada e a Carolco cancelou a obra, contratando a dupla para Soldado Universal, cujo roteiro Devlin assina ao lado de Richard Rothstein e Christopher Leitch.
Para dar uma ideia, é o primeiro crédito de Devlin como roteirista, segundo o IMDB. Leitch só faria roteiros de continuações da série (tendo carreira mais extensa na direção, principalmente na TV) e Rothstein também não faria nada muito além. Só assim para explicar três profissionais para criar o roteiro que copia na cara dura tantos filmes: há ecos de Apocalypse Now (1979), O Grande Dragão Branco, Robocop, O Exterminador do Futuro 2, Encurralado (Duel, premiado telefilme de Steven Spielberg de 1971), que detalharei a seguir.
A trama inicia em 1969, durante a Guerra do Vienã. O o soldado Luc Deveraux (Van Damme) encontra civis e membros do seu esquadrão mortos. A carnificina foi perpetrada pelo sargento Andrew Scott (Lundgren), que enlouqueceu e faz um colar de orelhas de suas vítimas! Aqui encontramos a primeira referência, proposital ou não, ao ensandecido e igualmente rebelado coronel Walter E. Kurtz de Marlon Brando em Apocalypse Now. Acontece que Lundgren está milênios-uz aquém de Brando e Emmerich jamais chegou perto de Francis Ford Coppola em seu auge, diretor do clássico setentista
Filmado em planos médios ou fechados, essa primeira parte passa longe de nos convencer que acontece na selva. As cenas foram filmadas no campo de golfe de Kingman, Arizona, utiilzando folhagem falsa.
Deveraux e Scott se enfrentam e se destroem. Há um corte e chegamos aos “dias atuais”, os anos 90. Há um sequestro acontecendo na represa Hoover. Para dar cabo da situação são chamados os soldados universais: sujeitos geneticamente fabricados, extremamente fortes e capazes de resolver o que humanos não conseguem, produzidos por uma agência paramilitar não muito preocupada com a ética. Reencontramos Deveraux e Scott, agora transformados e, a princípio, sem memórias de suas vidas anteriores.
A jornalista Veronica Roberts (Ally Walker) irá xeretar a empresa que fabrica os ciborgues, acabará perseguida e salva pelo personagem de Van Damme, que passa a recuperar a memória. A dupla precisará fugir dos demais soldados universais, liderados por Scott, que também relembra o passado e se revolta.
Van Damme já havia vivido um herói que tinha uma intrépida repórter loira de interesse romântico em O Grande Dragão Branco.
Vimos um homem ser violentado, massacrado, “salvo” e transformado em parte máquina (por uma empresa de segurança), e que depois recobrava a memória, em Robocop. Daria até para incluirmos na comparação o Ciborgue das histórias em quadrinhos da editora DC Comics, criado em 1980.
O caminhão que persegue as vítimas tresloucadamente pelas estradas do país remete ao de Encurralado.
Sobre perseguição vem rapidamente à mente O Exterminador do Futuro 2: temos a mulher, seu salvador parte máquina e uma máquina maligna no encalço.
Por sinal, as escolhas de Van Damme e Lundgren para interpretarem grandalhões metade homem, metade robô são perfeitas: atores inexpressivos, de falas monossilábicas, tal qual Arnold Schwarzenegger era no sucesso de James Cameron. A diferença é que nem Van Damme nem Lundgren carregam o carisma do ex-Mr. Universo.
Sobre pessoas alteradas geneticamente que devem agir para fins nada honrosos e depois recuperam a consciência e ficam em dúvida ainda me lembrei do Shadow Moon do seriado japonês Black Kamen Rider (1987).
Vemos o motel de beira de estrada que serve de refúgio dos perseguidos e, quando a violência explode, uma parede é derrubada e a ação passa por um quarto com casal nu – situação recorrente a tantos e tantos longas que fica difícil citar um só.
O “pai” dos soldados universais é o Dr. Christopher Gregor, vivido pelo veterano Jerry Orbach, dublador do Lumière em A Bela e a Fera (1991), coadjuvante em uma infinidade de produções e mais conhecido pelo detetive Lennie Briscoe no universo de Law & Order.
No Festival de Cannes de 1992, Jean-Claude Van Damme e Dolph Lungren “discutiram” do lado de fora do salão do evento. Na verdade, a treta era fake, a fim de promover a obra. Conseguiram gerar burburinho. E tornaram-se grandes amigos.
Ralf Moeller, que faz um dos soldados universais, já tinha atazanado a vida de Van Damme no “sub Mad Max 2: A Caçada Continua” da Cannon, Cyborg: O Dragão do Futuro (Cyborg, 1989), quando viveu um dos membros da gangue de piratas
Soldado Universal possui momentos (ou tentativas) de humor, alguma sacanagem, piadinhas de tom sexual, encaramos o bumbum de Van Damme. Costumava achar Ally Walker gatinha. Até descobrir várias divas do cinema infinitamente mais bonitas. Só que não existe química entre o casal protagonista. O filme não chega a ser trash ou pavoroso. Serve de diversão ligeira e esquecível, sem criatividade, ousadia ou talento. Quando vi a primeira vez, lá pelos meus 14 anos, cheguei a ter medo dos soldados universais. Adulto, dou aquela risada de canto de boca. Não entra nos meus guilt pleasures justamente por que não chega a ser uma produção de quinta categoria da Cannon e nem apresenta cenas memoráveis ou que tenham alguma relação com algo verdadeiramente marcante da minha vida.
Soldado Universal
Universal Soldier.
Estados Unidos. 1992.
Direção: Roland Emmerich.
Com Jean-Claude Van Damme, Dolph Lundgren, Ally Walker, Ed O’Ross, Ralf Moeller.
102 minutos.
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