Cidade dos Sonhos permanece um mergulho hipnótico no inconsciente de Hollywood

Mais de duas décadas após sua estreia, Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001), de David Lynch, voltou às salas de cinema no Brasil em cópia restaurada. Em tempos de narrativas apressadas, algoritmos e explicações didáticas, reencontrar um filme que se recusa a oferecer respostas é não só um respiro: nos lembra de que o cinema, em sua essência, também é mistério, dúvida, sugestão e delírio.

Ao longo de sua carreira, o cineasta sempre tensionou a lógica tradicional das histórias cinematográficas. Com Cidade dos Sonhos, levou essa proposta ao limite. O filme nasceu, inicialmente, como um projeto para a televisão. Em 1999, a emissora ABC encomendou um piloto para uma possível série dirigida por Lynch. O diretor entregou um material instigante, repleto de atmosfera e pistas falsas. A emissora, sem saber o que fazer com aquilo, rejeitou o projeto. Mas ele não desistiu. Recuperou os direitos, obteve financiamento na França — da produtora StudioCanal — e rodou cenas adicionais para transformar o piloto em longa-metragem.

Essa origem incomum é fundamental para entender a estrutura fragmentada da obra. O que vemos na tela parece, em grande parte, a tentativa de transformar um sonho em narrativa, sem perder a natureza elusiva. Lynch não costura as cenas com lógica causal, mas com um tipo de lógica emocional, intuitiva, feito um pesadelo que faz sentido apenas enquanto o vivenciamos.

Somos apresentados a Betty (Naomi Watts), jovem atriz canadense que chega a Los Angeles sonhando com a fama. Ao se instalar no apartamento de uma tia, encontra Rita (Laura Elena Harring), que sofre de amnésia após um misterioso acidente de carro na estrada Mulholland Drive. Juntas, tentam reconstruir a identidade de Rita, iniciando uma investigação que as leva por caminhos cada vez mais obscuros e distorcidos. À medida que o filme avança, os personagens parecem se transformar em outros, as linhas temporais se embaralham, e o que parecia ser realidade revela-se projeção, trauma ou fantasia.

Poucos filmes provocaram tanta discussão quanto Cidade dos Sonhos. A virada narrativa que ocorre na segunda metade — e que reorganiza toda a percepção do que assistimos até então — é um dos momentos mais debatidos da história recente do cinema. Lynch não oferece chaves fáceis para a compreensão. Oferece sensações. E neste longa, a experiência é o que importa.

Naomi Watts entrega uma atuação impressionante, transbordando talento em uma personagem que exige múltiplas camadas. Ela interpreta duas versões da mesma figura — ou seriam duas figuras distintas? — com maestria e entrega emocional. Já Laura Harring evoca as musas do cinema clássico com um charme misterioso e vulnerável, reforçando a atmosfera noir e enigmática que permeia o longa.

Toda a estética do filme contribui para esse estado de torpor hipnótico. A trilha sonora de Angelo Badalamenti cria um ambiente sonoro ao mesmo tempo melancólico e ameaçador. A montagem de Mary Sweeney, colaboradora fiel de Lynch, organiza o caos com precisão cirúrgica. E a fotografia de Peter Deming transforma Los Angeles em uma cidade de espectros, de sonhos não realizados e desejos corrompidos.

Lançado no Festival de Cannes de 2001, Cidade dos Sonhos rendeu a David Lynch o prêmio de Melhor Direção (dividido com Joel Coen, por O Homem Que Não Estava Lá). A recepção da crítica foi imediata e entusiástica. O filme seria indicado ao Oscar de Melhor Direção e ganharia status de obra-prima ao longo dos anos seguintes. Em 2016, foi eleito o melhor filme do século XXI pela crítica internacional reunida pela BBC Culture, superando obras de diretores como Paul Thomas Anderson, Wong Kar-Wai e Terrence Malick.

Fora do circuito de premiações, o impacto foi ainda mais profundo. Tornou-se objeto de estudo em universidades, tese de doutorado, vídeos-ensaio, análises detalhadas por cinéfilos e estudiosos mundo afora. E mais que isso: influenciou uma geração de realizadores e espectadores a aceitarem que o cinema não precisa oferecer todas as respostas — basta que provoque as perguntas certas.

Assistir a Cidade dos Sonhos hoje é revisitar o inconsciente de uma cidade e de uma indústria que vendem ilusões embaladas em glamour. Lynch desmonta esse artifício com uma sensibilidade rara. Mostra que Los Angeles, a Cidade dos Sonhos, está muito além dos tapetes vermelhos: é construída a partir de frustrações, amores não correspondidos, fracassos e desejos ocultos. E o faz por meio de um cinema que recusa a obviedade e aposta na potência do não dito.

O retorno do filme às telas brasileiras em 2025 é um presente. Uma chance de ver — ou rever — essa obra como deve ser experienciada: no escuro da sala, com som imersivo e imagem ampliada, onde os sentidos e a imaginação se tornam protagonistas.

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