Hair (1979) e o sol que necessitamos

 

Geralmente quando a humanidade consegue avanços nas relações sociais, no comportamento, na cultura, em prol de um mundo mais justo, surgem movimentos contrários, pregando os valores da família “tradicional”, da religião e dos bons costumes, sejam lá o que esses “costumes” representem.

Alguns anos atrás presenciamos políticas públicas inclusivas, de representatividade, diversidade, novas universidades, a melhora no consumo da população, pessoas deixaram de passar fome, tiveram oportunidades. Para, em seguida, a onda de extrema-direita desconstruir, demolir as conquistas sociais. É um movimento cíclico.

Lembremos os anos 1960. Escrevi sobre Bonnie & Clyde: Uma Rajada de Balas (1967, de Arthur Penn). “… Período de transformação política e social. Busca pelos direitos civis. Panteras Negras. Hippies. Rock psicodélico. Inconformismo com a Guerra do Vietnã. Pop art. O mundo mudava a passos largos. Hollywood demorava a entender as mudanças. A Era de Ouro dos estúdios chegava ao fim. O fracasso retumbante de Cleópatra (1963), com Elizabeth Taylor, era a pá de cal num sistema que produzia filmes cada vez mais distantes da realidade. Os norte-americanos não se enxergavam mais nas superproduções e seus heróis. Viam filhos, irmãos, amigos, irem à guerra e não voltarem. Caso voltassem, estavam aleijados, física e psicologicamente”.

Treat Williams in Hair (1979)

As transformações aconteciam em todos os campos da arte.

No teatro, uma peça inicialmente off-Broadway seria a síntese do movimento hippie e chegaria como uma voadora nos reacionários de plantão: Hair.

Criado por James Rado e Gerome Ragni, responsáveis pelas letras que seriam musicadas por Galt MacDermot, o musical inicialmente encontrou dificuldade em conseguir espaços. Foi encenado em danceteria. Até chegar à Meca do teatro musical, onde seria apresentado mais de 1700 vezes!

Vários fatores contribuíram para o êxito do projeto. A começar pelo título: o “cabelo” cumprido era símbolo da transgressão, do diálogo, da transformação, do questionamento, da liberdade, da empatia.

No espetáculo o público deparava-se com a profanação de valores, o uso de drogas, liberdade sexual, rock, representatividade a partir da integração racial do elenco. Surgia o “rock musical”. Ao fim do espetáculo, a plateia era convidada a subir ao palco, cantar e dançar junto dos atores, algo inusitado.

A cena de nu explícito causou controvérsia entre puritanos e carolas. Todos esses ingredientes, no entanto, mais as músicas marcantes, empolgantes e inteligentes que viraram hinos do libelo antibelicista fizeram, da peça, um retrato de sua época. Sendo reencenada em vários países, idiomas e pelas décadas seguintes.

Vieram os anos 1970. O Caso Watergate, a renúncia de Nixon, ditaduras mundo afora, governos reacionários nos Estados Unidos e na Inglaterra jogaram um balde de água fria no espírito libertário da Era de Aquarius.

A contracultura não tinha a força da década anterior, mas ainda ecoava aqui e ali: o punk rock e o próprio cinema da Nova Hollywood que durou até a virada para os anos 1980.

Hair tardou, porém chegou aos cinemas em 1979 pela mente do cineasta checo Milos Forman. Quatro anos antes, ele retratou pessoas marginalizadas, deslocadas e incompreendidas pela sociedade no premiado Um Estranho no Ninho (One Flew Over the Cuckoo’s Nest), um dos três únicos longas-metragens que receberam as cinco principais estatuetas do Oscar (Filme, Direção, Roteiro, fosse original ou adaptado – coincidentemente todos ganharam nessa segunda categoria, Ator e Atriz). Os demais foram Aconteceu Naquela Noite (It Happened One Night, 1934, de Frank Capra) e O Silêncio dos Inocentes (The Silence of The Lambs, 1991, de Jonathan Demme).

Em Um Estranho no Ninho, Jack Nicholson vive um meliante que, para fugir da prisão, finge ter problemas mentais e vai parar no hospital psiquiátrico, onde é perseguido pela enfermeira interpretada por Louise Fletcher e desencadeia uma revolução com os demais internos.

Os grandes filmes da Nova Hollywood, por sinal, são sempre protagonizados por sujeitos marginalizados, deslocados e incompreendidos e quase sempre possuem comportamentos transgressores, influenciam o meio.

Don Dacus in Hair (1979)

Fossem os motoqueiros de Easy Rider (1969, de Dennis Hopper), o casal de assaltantes de Bonnie & Clyde, o taxista paranoico de Taxi Driver (1976, de Martin Scorsese), os pugilistas de Rocky, Um Lutador (1976, de John G. Avildsen) e Touro Indomável (Raging Bull, 1980), os mafiosos de Caminhos Perigosos (Mean Streets, 1973 – este e o anterior também de Scorsese) e O Poderoso Chefão Partes I e II (1972 e 1974, de Francis Ford Coppola), os combatentes no Vietnã em O Franco Atirador (The Deer Hunter, 1978, de Michael Cimino) e Apocalipse Now (1979, outro de Coppola), os jornalistas em Todos os Homens do Presidente (All The President’s Men, 1976, de Alan J. Pakula) e Rede de Intrigas (Network, 1976, de Sidney Lumet), órfãos em Guerra nas Estrelas (Star Was,1977, de George Lucas) e Superman (1978, de Richard Donner), criaturas assustadoras em Tubarão (Jaws, 1975, de Steven Spielberg) e O Exorcista (The Exorcist, 1973, de William Friedkin), e o humorista judeu que faz análise de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977, de Woody Allen).

Geração criativa, ousada, prolifica. De grandes cineastas (não apenas os citados aqui), atores e atrizes (a lista é imensa), e obras seminais do cinema produzido nos Estados Unidos. Todos marcaram época. Nem todos são obras primas, mas contribuíram de alguma forma para a história do cinema.

Hair, o filme, foi lançado bem depois da peça original. Ok. Não pode ser entendido como um retrato de uma era feito no calor dos acontecimentos. Todos os Homens do Presidente, por exemplo, chegou aos cinemas “apenas” quatro anos após o início dos acontecimentos mostrados no filme. Por outro lado, considerando a produção cinematográfica dos anos 1970, sua abordagem, sua visão de sociedade, é completamente condizente com o momento de sua produção. Traz igualmente protagonistas marginalizados, deslocados e incompreendidos, de comportamentos transgressores e que influenciam o meio.

Dorsey Wright in Hair (1979)

Não é uma adaptação fiel do texto teatral. Nem precisava. Forman e o roteirista Michael Weller entenderam que seriam necessárias alterações para tornarem a trama mais dinâmica, com ritmo para as plateias cinematográficas. Para isso alteraram as origens de alguns personagens, acrescentarem conflitos, reduziram a tribo de hippies, selecionaram as canções e alteraram o final – opção interessante, afinal, quem viu a peça seria surpreendido ao conferir a adaptação para as telonas.

Alguns críticos do período não gostaram. Chegaram a afirmar que a versão para o cinema de Hair ainda não tinha sido feita. Pura bobagem. O tempo é o senhor da razão, diz o dito popular. A essência da mensagem está lá. Ver Hair hoje continua sendo uma experiência prazerosa, emocionante, estimulante.

Começando pelos primeiros minutos. Claude (John Savage) sai do interior em direção à Nova York para servir ao exército e ir para a Guerra. Quando chega à metrópole, é surpreendido pelos hippies no Central Park. Ao som de Aquarius, acompanhamos pessoas de todos os estilos, cores, penteados, dançando, meditando. Uma explosão de cores, beleza, sensualidade.

Twyla Tharp, dos maiores nomes da dança contemporânea no século XX, preparou as coreografias realizadas pelos atores principais e os dançarinos da Twyla Tharp Dance Foundation. A movimentação é fluída, bem distribuída na tela. Soa desconexa, como se não houvesse ensaio. Nada disso. É tudo bem pensado, orquestrado. Ela voltaria a trabalhar com o diretor em Ragtime (1981) e Amadeus (1984).

Claude conhece a tribo: formada por Berger (Treat Williams), Jeannie (Annie Golden), Hud (Dorsey Wright) e Woof (Don Dacus). Todos se recusam a aceitar o conflito armado e defendem as liberdades, o amor livre. Vivem um dia de cada vez. Logo, eles conhecerão Sheila (Beverly D’Angelo), jovem aristocrata, por quem Claude sente-se atraído. A partir daí veremos a amizade crescente entre eles e o conflito que se estabelece: Claude deve seguir o que lhe foi determinado, ir para a guerra e provavelmente morrer em nome do país, ou deixar-se levar pelo amor e a amizade nascentes?

Surgem sequências memoráveis. Difícil destacar alguma. O filme inteiro é maravilhoso. Algumas sempre me vêm à mente.

A invasão à festa na mansão onde Sheila mora. A tribo quer apenas a chance de Claude declarar-se à jovem. São interrompidos e tentam expulsá-los. Berger então sobe à mesa, canta e dança I Got Life.

Quando vão presos, Berger procura retorna à casa de sua família para tentar angariar dinheiro e pagar a fiança dos amigos. O pai, recusa-se. Fala para o filho trabalhar, fazer algo da vida. A mãe o chama de canto e o ajuda. Momento singelo, sobre a cumplicidade entre mãe e filho. Enquanto isso, acontece uma rebelião na cadeia ao som da canção-título. Na música, os cabelos longos, vale reforçar, significam romper com o status quo, com o sistema. São símbolos da transformação.

Em Hare Krishna somos convidados à uma viagem de LSD com o elenco numa sequência que representa os sonhos. Treat Williams surge sensual, animalesco, numa dança provocativa, enquanto Beverly D’Angelo “bate asas” e voa pelo cenário e John Savage “viaja”. Prevê um futuro que, sabe, dificilmente viverá.

Black Boys e White Boys são apresentadas em sequência divertida e, ao mesmo tempo, celebra a integração das etnias a partir da atração física. Já Walking in Space é metáfora para as viagens proporcionadas pelo uso de substâncias químicas para fazer um tratado da liberdade, da beleza humana e a expansão da nossa visão de mundo (“our eyes aren open”). E há Let The Sunshine In. Porém sobre essa escrevo mais à frente.

Alguns diálogos merecem lembrança.

Perguntado por quem lutará no Vietnã, Claude dispara: por você! Hud responde: Não precisa lutar por mim.

O “lutar por você” ou “lutar pelo país” são usados para justificar o envio de jovens às guerras. Guerras forjadas por interesses escusos. No caso do Vietnã, uma guerra que, sabia-se, seria perdida – assista The Post – A Guerra Secreta (2017, de Steven Spielberg) para entender.

Em outro momento, enquanto caminham, Hud é chamado. Ao olhar para trás, vê sua noiva (Cheryl Barnes) e seu filho pequeno e dá-se uma discussão. Ela vê Jeannie, grávida, e pergunta a ele de quem é o filho? Hud responde que ela não entenderia e é interpelado: afinal, antes da vontade de ser livre, é preciso cuidar do filho e ao menos amparar a mãe. A liberdade está acima das responsabilidades? A personagem de Barnes então entoa Easy to Be Hard, numa das interpretações mais intensas do longa.

A “noiva do Hud” junta-se à turma. E há outro diálogo interessante. Dessa vez ela e Jeannie conversam. A primeira pergunta se a integrante da tribo não se preocupa em quem é o pai. Jeannie sabe que, independente do pai da criança ser Hud ou Woof, o bebê será amado. Isso é o suficiente. E pergunta à nova colega se ela não poderia ficar feliz por isso também. Ao fim da conversa ambas trocam sorrisos singelos, cúmplices.

Hair tem humor, leveza, drama, ironia, sensibilidade. Que funcionam, também, graças ao elenco, ressaltando o trio principal.

John Savage traduz o sujeito interiorano um tanto ressabiado que, aos poucos, se solta. Esteve em outro filme de destaque da época, O Franco Atirador. Treat Williams emana carisma, charme no papel de líder da tribo. Beverly D’Angelo traduz a rica que se sente sufocada pela família e encontra na turma a chance de liberar desejos, vontades. Está atraída por Berger e Claude – o primeiro uma atração sexual e, o segundo, alguém que pode lhe render um futuro, relação estável. Acontece que os três personagens são transformados, influenciam e são influenciados uns pelos outros. Nenhum dos três intérpretes virou estrela em Hollywood. Tiveram carreiras consistentes, muito na TV e, curiosamente, todos participaram em diferentes episódios da série Law & Order: Special Victims Unit.

Annie Golden é leveza, pureza, cativante, Dorsey Wright nos intimida e encanta com seus olhos esbugalhados e voz poderosa, Don Dacus é o sujeito sensível (e seu Woof, quando interrogado pela polícia, afirma não ser homossexual, mas não expulsaria Mick Jagger de sua cama, em outra frase emblemática). Cheryl Barnes adiciona drama à turma e canta muito!

Chegamos ao final apoteótico e que altera o desfecho original da peça. No teatro, é Claude quem vai para a guerra. No filme, o grupo decide fazer uma visita à base militar onde Claude está. Para que possa se despedir de Sheila. Berger então troca de lugar com o amigo. Ocorre que os soldados são convocados e não há mais tempo de desfazer a situação.

Nos afligimos, pois Berger é a favor da paz, jamais pegou em armas. Quando menos esperamos ele já partiu e a câmera foca em Claude, Sheila, Woof, Hud no cemitério, em frente à lápide do amigo. Tudo isso acontece ao som da seminal Let The Sunshine, canção linda, forte, contestadora, que não esquece de um dos ícones da contracultura, o psicólogo, neurocientista, escritor, futurista, propagador do LSD, Timothy Leary. Encerra com um plano geral da multidão protestando, em Washington, no jardim em frente à Casa Branca, com a bandeira dos Estados Unidos, pequenina, lá no meio. Cena icônica, impactante.

Hair marcou minha vida. Meu primeiro contato foi aos 15 anos. Fazia curso técnico numa escola pública estadual. Logicamente percebi que não queria seguir naquela profissão e mudei de rumos. Foi graças ao professor de português, que nos exibiu o filme. A maior parte dos alunos não ligou, deu risada.

Quando adolescentes podemos ser cruéis. Lá no meio dos anos 1990, não havia a difusão de informações sobre a importância da diversidade, da representatividade, da inclusão, do respeito às diferenças. Piadas homofóbicas eram recorrentes no colégio, na rua. Hoje, ainda bem, percebo que a garotada é mais sensível, respeita mais as diferenças. Ao menos é a impressão que tenho quando vou palestrar em escolas, faculdades.

A mensagem do filme acabou não pegando entre a classe. Entretanto, as músicas me cativaram. Ali no meio delas percebi algo especial. Assim seria e voltaria a assistir ao filme dezenas de vezes. Veria a versão da Broadway de 2009 nos vídeos disponibilizados no Youtube e poderia assistir, ao vivo, a convite do amigo crítico de cinema e artista plástico Waldemar Lopes, a montagem brasileira de 2012, assinada por Charles Möeller e Claudio Botelho.

Escrevi sobre o espetáculo teatral: “é tudo aquilo que tem sido falado e mais um pouco: belo, inesquecível, contestador, sensual, hipnótico, emocionante, às vezes triste, às vezes engraçado, místico, real, atemporal, universal, intenso, sensível, louco, inteligente”.

Adjetivos que servem ao filme. Ou melhor, à essência que peça e teatro carregam e segue sendo importante. Pois, como comentei lá no início do texto, infelizmente sempre que liberdades são conquistadas, que passos são dados em prol de um mundo mais justo e igualitário, vem a contracorrente. Hair é, inclusive, sobre a família. Não a família judaico-cristã tradicional. Família no sentido de pessoas unidas pelo amor, pela fraternidade.

Você não precisa ter os cabelos longos para se emocionar, simpatizar ou entender essa mensagem. Na verdade, ela é bem simples e vem carregada de energia e lindas canções. Basta respeitamos as pessoas, nos respeitarmos, tentarmos ter empatia. Continuarmos deixando, ou buscando deixar, o sol entrar.

Hair
Estados Unidos, Alemanha Ocidental. 1979.
Direção: Milos Forman.
Com Treat Williams, John Savage, Beverly D’Angelo, Annie Golden, Dorsey Wright, Don Dacus, Cheryl Barnes.
121 minutos.

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