Infâmia (The Children’s Hour, 1961), o poder destrutivo dos boatos e as fake news


Por André Azenha 

Quando lançados, certos filmes nem sempre recebem a atenção ou o status merecidos. Ora não encontram seu público na ocasião da estreia, ora a crítica e a imprensa especializada não percebem suas qualidades.

Infâmia é assim. Tinha tudo para ser uma obra emblemática quando chegou aos cinemas em 1961: um diretor consagrado, três protagonistas no auge e tema capaz de gerar debates à época. Sua relevância aumentou ao passar dos anos.

Visto em retrospectiva, percebemos o quão parte da sociedade evoluiu em alguns aspectos, enquanto setores mantiveram-se hipócritas e conservadores em outros.

O longa é sobre o poder destrutivo do boato e o preconceito. Tudo a ver com os anos 2010, pontuados por fake news, linchamentos públicos presenciais e virtuais, governantes de características fascistas e camadas da população igualmente intolerantes que, enxergando nesses políticos seus espelhos, tiveram a coragem de “saírem do armário”.

Miriam Hopkins, Joel McCrea, and Merle Oberon in These Three (1936)
Miriam Hopkins, Joel McCrea e Merle Oberon no Infâmia de 1936.

Antes é preciso retornar à obra que inspirou o filme. Ou melhor, os filmes. The Children’s Hour foi a primeira peça da dramaturga norte-americana Lillian Hellman. Estreou em 20 de novembro de 1934. Foram quase 700 apresentações e dois anos em cartaz. Acompanhava a vida de duas professoras acusadas de amantes e que têm suas vidas destruídas.

Na Broadway, jamais foi censurada. Mas a autora e o diretor Herman Shumlin viram seu trabalho ser proibido em cidades como Boston, Chicago e Londres.

Sua primeira adaptação ao cinema aconteceu em 1936, batizada These Three (Infâmia no Brasil). Eram tempos de Código Hays, ou Motion Picture Production Code, conjunto de normas “morais” vigente na produção cinematográfica dos Estados Unidos entre 1930 e 1968, que levava o nome de Will H. Hays, advogado e político presbiteriano e presidente da Associação de Produtores e Distribuidores de Filmes da América.

William Wyler discussing "The Children's Hour" with author Lillian ...
William Wyler e Lillian Hellman.

O diretor William Wyler e a própria Lillian Hellman, que também escreveu o roteiro da adaptação, precisaram alterar a história, transformando-a em narrativa heteronormatizada.

Em seu site 50 Anos de Filmes, o jornalista Sergio Vaz recorda: “O diretor Wyler era amigo de Lillian Hellman, e os dois trabalharam juntos diversas vezes. Lillian escreveu o roteiro de Beco Sem Saída/Dead End, de 1937, dirigido por Wyler, com Humphrey Bogart ainda como coadjuvante. Em 1941, ele filmou outra das grandes peças dela, The Little Foxes (aqui, Pérfida), com roteiro da própria autora, mais cenas adicionais e diálogos assinados por um trio que inclui outro grande nome da literatura americana, Dorothy Parker”.

No IMDB, diz a sinopse: “Esta primeira versão cinematográfica usa um triângulo heterossexual em vez do tema lésbico da peça. A trama diz respeito às professoras Karen Wright e Martha Dobie, ambas apaixonadas pelo Dr. Joe Cardin. A mentira maliciosa de um de seus alunos envolve os três em um escândalo que atrapalha a vida de todos”.

Audrey Hepburn, Shirley MacLaine, and James Garner in The Children's Hour (1961)
Audrey Hepburn, James Garner e Shirley MacLaine no Infâmia de 1961.

Karen, Martha e Joe foram interpretados respectivamente por Merle Oberon, Miriam Hopkins e Joel McCrea; Bonita Granville encarnou a menina fofoqueira Mary Tilford e recebeu indicação ao Oscar de atriz coadjuvante.

Vinte e cinco anos depois Karen, Martha, Joe e Mary seriam vividos por Audrey Hepburn, Shirley MacLaine, James Garner e Karen Balkin. O Código Hays, “afrouxado”, já não impediria que Wyler e Hellman, auxiliada por John Michael Hayes, mantivessem o tom original da obra. Miriam Hopkins, a Martha anterior, retornaria, agora no papel da tia Lily.

Karen e Martha administram um colégio interno só para meninas. São professoras, faxineiras, enfim, se multiplicam para dar conta da instituição, que praticamente não dá lucro.

Depois de ser punida pelas professoras por contar mentiras, uma das alunas, Mary, reclama com sua avó – Mrs. Amelia Tilford (Fay Bainterd) – e inventa que Martha tem ciúme de Karen, esta última noiva do médico Joe Cardin (James Garner).  A senhora fica horrorizada, tira a menina da escola e espalha o boato. A partir daí as duas mulheres começam uma batalha contra as acusações e suas consequências.

À essa altura, Wyler era cineasta consagrado. Tinha vencido o Oscar de direção três vezes: por Rosa de Esperança (Mrs. Miniver, 1942), Os Melhores Anos de Nossas Vidas (The Best Years of Our Lives,1946) e Ben-Hur (1959). Receberia ainda um Oscar honorário em 1966. Audrey Hepburn era das maiores estrelas do cinema mundial, Oscar de atriz por A Princesa e o Plebeu (Roman Holiday, 1953) e muitos sucessos e prêmios no currículo. Shirley MacLaine, a irmã mais velha de Warren Beatty, se destacou em Se Meu Apartamento Falasse (The Apartment, 1960). E James Garner era galã conhecido do público, oriundo da série televisiva Maverick. Só gente da pesada, competente, reconhecida.

Teve cinco indicações ao Oscar: fotografia em preto e branco, figurino, direção de arte, som e atriz coadjuvante (Fay Bainter). Mas são Audrey e MacLaine que nos hipnotizam, nos emocionam e transmitem todo o turbilhão de sentimentos e sensações de Karen e Martha. A cena final é um close em Hepburn, cujo olhar nos deixa transtornados, admirados. Um dos momentos que mais me marcaram nessa vida de ver filmes sem parar. Me questiono em pensamento como pode existir alguém que duvide das capacidades dramáticas da atriz. OK, sua lenda foi construída, em grande parte, graças aos musicais e comédias românticas que protagonizou, aos lindos figurinos que utilizou. Sua atuação em Infâmia nos dá todo o seu potencial.  

Shirley MacLaine não fica atrás. Sofremos junto à Martha. Bom, ao menos quem tem um pingo de sensibilidade. Homofóbicos, eleitores de Trump, Bolsonaro, provavelmente concordarão com a punição que a sociedade imprime às duas.

Audrey Hepburn and Shirley MacLaine in The Children's Hour (1961)

Ao conceber a obra, Lillian Hellman praticamente previu seu futuro. Em 1951, ela e o escritor Dashiell Hammett – seu marido por trinta anos – foram intimados a depor na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Atividades Antiamericanas. Ele foi preso por seis meses, após se recusar a delatar os colegas. O casal integrou a lista da caça às bruxas, promovida pelo senador Joseph McCarthy durante os anos 50. A autora escreveria sobre o episódio e as consequências dele em sua vida em 1976, no livro Scoundrel Time.

Décadas mais tarde filmes repetiriam a fórmula ao retratar como o boato é capaz de aniquilar vidas, famílias. Sergio Vaz e o crítico Luiz Carlos Merten, do Estadão, citam o excepcional Desejo e Reparação (2007), de Joe Wright – particularmente considerado um dos injustiçados do Oscar 2008, pois merecia ter levado os principais prêmios ao invés de Onde Os Fracos Não Têm Vez, dos irmãos Coen.

“Conhecendo o ponto de partida, sempre achei que Ian McEwan leu a peça de Lilian Hellman ou viu o filme de Wyler antes de escrever AtonementReparação, que virou o belo Desejo e Reparação, de Joe Wright. Naturalmente que ele fez outra coisa, mas em ambos a garota vê uma coisa que interpreta de um determinado jeito e, a partir daí, muitas vidas são afetadas”, escreve Merten.

Books versus movie: Ian McEwan's Atonement is a great novel and a ...
Saoirse Ronan em Desejo e Reparação.

Neste drama de época baseado no excelente livro Reparação (Atonement), de Ian McEwan, a garota Briony (interpretada pela então revelação Saoirse Ronan – conforme a personagem envelhece ela também é vivida por Romola Garai e Vanessa Redgrave) quem inventa uma situação que prejudica as vidas da irmã mais velha, Cecilia (Keira Knightley) e de Robbie (James McAvoy), o filho da empregada da mansão onde vivem.

Os dois últimos mantém uma relação ás escondidas. São de classes sociais diferentes e a revelação do namoro chocaria a família. Briony é apaixonada por Robbie e sente ciúmes. Troca os pés pelas mãos – o acusa de algo que ele não fez. A motivação da garota imatura está longe da vilania de Mary de Infâmia, calcada no preconceito. O resultado, no entanto, é igualmente devastador para todos à sua volta, ainda que Briony se arrependa tardiamente.

Sergio Vaz traça um paralelo entre Infâmia a outro drama denso sobre o poder devastador do boato, Dúvida (Doubt, 2008), de John Patrick Shanley. “Ao rever o filme agora, não pude deixar de lembrar do recente e também excelente Dúvida, igualmente baseado em uma peça de teatro, um filme, como eu disse na anotação sobre ele, ‘sobre religião, educação, amor ao próximo, certeza e dúvida, sobre os julgamentos que fazemos sobre as pessoas e seus atos sem ter prova concreta de nada, sobre como boatos podem destruir vidas’”.

Comparação plausível que apresenta duas situações, duas atitudes, que condenam ou podem condenar terceiros, vítimas do boato, da intriga, da fofoca. O que me levou a refletir sobre como parte da sociedade, mal informada, manipulada, tende a colocar sob a mesma ótica situações totalmente diferentes, que levam a injustiças e, até na vida real, a tragédias.

Philip Seymour Hoffman doubt – Análise Indiscreta
Philip Seymour Hoffman em Dúvida.

Em Infâmia, o boato, a intriga, a fofoca, é sobre a possível relação amorosa entre duas mulheres. Martha seria apaixonada por Karen. Escrevo este texto em 2020 e, por incrível que pareça, é preciso ressaltar, explicar: ser apaixonada ou se sentir atraída por alguém do mesmo gênero não é crime. Não deveria ser. Só em sociedades atrasadas, intolerantes. E, mesmo no Ocidente, em nações como os Estados Unidos ou o Brasil, laicos e, a princípio mais democráticos, a hipocrisia come solta e o medo do diferente tende a levar pessoas ao preconceito, seja pela falta de informação, pela intransigência religiosa ou pela pura e simples homofobia.

Em Dúvida, o padre Brendan Flynn (Philip Seymour Hoffman) é chantageado e ameaçado pela Irmã Aloysius Beauvier (Meryl Streep). A trama acaba sem sabermos se ele é culpado ou não de ter abusado sexualmente de um coroinha, um garoto. Caso ele tenha consumado a atitude, aí sim, é crime, algo perverso, ato tomado pela posição de poder.

Martha tem um sentimento incompreendido numa comunidade intolerante. O segundo, caso realmente tenha feito a atitude sugerida pela Irmã Beaubier, é um criminoso, deveria ser preso.

Mulher morreu apos ser espancada em Guarujá, SP (Foto: Arquivo Pessoal)
Fabiane Faria de Jesus foi vítima de linchamento baseado em fake news.

Um dos casos reais mais notórios e chocantes ocorreu em 2014. Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, dois filhos pequenos, morreu linchada por moradores do bairro de Morrinhos IV, em Guarujá. O massacre aconteceu porque a vítima foi confundida com uma suposta sequestradora de crianças, cujo retrato falado que havia sido feito dois anos antes, passou a circular nas mídias sociais. O fato causou forte comoção nacional, principalmente por ter sido motivado por notícias falsas. Foi a vigésima morte por linchamento no Brasil naquele ano.

O preconceito, a falta de informação, o fanatismo religioso e outros gatilhos fazem pessoas colocarem tudo no mesmo balaio, não saber distinguir o que é normal e precisa ser defendido (orientação sexual) e o que é abominável (pedofilia).

A definição de pedofilia, segundo o Ministério Público do Distrito Federal: “Trata-se de uma doença, um desvio de sexualidade, que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças e adolescentes de forma compulsiva e obsessiva, podendo levar ao abuso sexual. O pedófilo é, na maioria das vezes, uma pessoa que aparenta normalidade no meio profissional e na sociedade. Ele se torna criminoso quando utiliza o corpo de uma criança ou adolescente para sua satisfação sexual, com ou sem o uso da violência física”.

Sobre homoafetividade: “Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, imprimindo novos rumos à causa dos movimentos homossexuais no Brasil. Contudo, apesar de esse marco institucional indicar uma mudança de paradigma, verifica-se que as concepções desfavoráveis sobre a homoafetividade e os direitos das minorias sexuais continuam sendo difundidas discursivamente pela sociedade”, explicam Raquel Moraes e Leoncio Camino no artigo Homoafetividade e direito: um estudo dos argumentos utilizados pelos ministros do STF ao reconhecerem a união homoafetiva no Brasil.

A diferença entre as situações é óbvia, ululante. Ao menos deveria ser. Porém o que esperar de um mundo onde existe quem defenda que família só pode ser formada por marido, esposa e filhos?

No debate presidencial da Rede Record para as eleições de 2014, houve a famosa fala bisonha do então candidato Levy Fidelix, de que “aparelho excretor não reproduz”. Sua adversária, Luciana Genro, o questiona “por que as pessoas que defendem tanto a família, se recusam a reconhecer como família um casal do mesmo sexo”. Totalmente transtornado, Fidelix, dito cristão e “de bem”, defende o Papa por ter expulso um pedófilo.

LAW &ORDER SVU
B.D. Wong em Law & Order: SVU.

Recordo, nesse sentido, um episódio da magnífica série Law & Order: Special Victims Unit. Uma rede de pedófilos na deep web é desbaratada pela pelo departamento de política de Nova York. Um dos criminosos, preso, defende que ele e seus congêneres são incompreendidos atualmente tal qual os homossexuais eram incompreendidos antes. O Dr. George Huang (B.D. Wong), um psiquiatra do FBI emprestado à polícia, fica indignado com o argumento do vilão. Huang, um homem gay, jamais tentou abusar de uma criança. Precisamos ser didáticos, difundir as informações corretas. Muitas injustiças são cometidas em nome de Deus, da “Família”, dos “cidadãos de bem”.

Infâmia pode não ter recebido o devido reconhecimento em 1961. Muito tempos depois mantém sua força, capaz de gerar reflexões, nos levar a pensar como o mundo pode ser cruel, injusto. É um debate sobre intolerância, preconceito, hipocrisia, que nos esfrega na cara como ainda precisamos evoluir e melhorar enquanto sociedade, relações humanas e, por tudo, isso merece seu lugar especial na história do cinema.

Infâmia
The Children’s Hour
Estados Unidos. 1961.
Direção: William Wyler.
Com Audrey Hepburn, Shirley MacLaine, James Garner, Miriam Hopkins, Fay Bainter, Karen Balkin, Veronica Cartwright.
108 minutos.




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