A “marvelização” dos filmes, especialmente aqueles baseados em livros, quadrinhos ou histórias da cultura pop, nos faz celebrar qualquer obra cinematográfica que fuja do lugar-comum e tente algo diferente. Esse termo se refere à padronização narrativa e visual que muitos blockbusters seguem, especialmente após o sucesso do universo Marvel. Dentro desse contexto, o trabalho de Todd Phillips com Coringa (2019) e sua continuação, estrelados por Joaquin Phoenix, representa uma ruptura importante, trazendo uma abordagem mais sombria e psicológica. No entanto, mesmo tentando ser diferente, Coringa também não escapa de algumas armadilhas.
A trama segue Arthur Flec (Joaquim Phoenix), o Coringa, enquanto aguarda julgamento. O promotor Harvey Dent pede sua condenação à pena de morte. Na prisão, Arthur é constantemente humilhado pelos guardas, especialmente por um policial interpretado de forma convincente por Brendan Gleeson. Durante uma aula de canto, destinada a criminosos de menor grau, Arthur conhece Harley Quinn (Lady Gaga), que no filme é chamada de Lee. A personagem rapidamente desenvolve um interesse por ele. À medida que a história avança, vamos descobrindo mais sobre o passado de Lee, e nem tudo é o que parece. A partir desse ponto, o julgamento se desenrola, pontuado por canções – algumas organicamente inseridas na narrativa, outras surgindo em momentos de delírio, como o próprio título Delírio a Dois sugere.
A crítica da Folha de São Paulo sugere que Todd Phillips quis provocar os fãs com suas escolhas ousadas, mas é difícil acreditar nessa intenção deliberada. Um diretor do calibre de Phillips, com um orçamento gigantesco e expectativas imensas – impulsionadas pelo sucesso massivo do primeiro filme, que arrecadou 1 bilhão de dólares –, dificilmente colocaria tudo a perder de propósito. O que parece ter ocorrido é que Phillips se perdeu em sua ambição de misturar um drama pesado com elementos de musical. Embora as canções sejam bem executadas, com Lady Gaga brilhando como cantora e Joaquin Phoenix surpreendendo ao cantar em várias cenas, o filme acaba perdendo o rumo, sem saber bem para onde ir.
Outro ponto importante a se discutir é a repetição que temos visto nos blockbusters das últimas décadas. Muitas dessas produções seguem fórmulas narrativas e visuais bastante similares. Quando um filme sai desse padrão e se conecta com o período de ouro do cinema de Hollywood dos anos 70, como é o caso do primeiro Coringa de 2019 e deste novo, críticos e fãs menos familiarizados com a história do cinema podem acabar ovacionando esse tipo de obra. Coringa repete, de forma clara, referências a clássicos como Taxi Driver e outros filmes da década de 70 que foram marcados por sua profundidade psicológica e abordagem crua da realidade. É interessante notar que o ator que interpreta o juiz no julgamento de Arthur Fleck se assemelha a Martin Scorsese, de quem Todd Phillips claramente bebe na fonte. Vale lembrar que Scorsese chegou a ser considerado para produzir o primeiro filme do Coringa, em 2019, o que só reforça essa conexão direta.
Contudo, por mais que Phillips tente homenagear esses clássicos e inserir elementos musicais, o resultado final é inconsistente. O diretor se perde ao tentar equilibrar o drama psicológico com o formato de musical. As cenas de delírio e as canções, embora bem feitas, parecem deslocadas e acabam enfraquecendo a narrativa em vez de fortalecê-la. Em vez de encontrar um equilíbrio, o longa vacila entre esses dois tons, resultando em uma experiência fragmentada. É uma pena, porque a intenção de trazer algo (aparentemente) novo ao gênero dos quadrinhos é louvável, mas a execução não conseguiu sustentar essa ambição.
Tanto o primeiro filme de 2019 quanto este novo não são, nem de longe, os primeiros inspirados em personagens de quadrinhos a contar histórias trágicas e dramáticas. Houve Darkman: Vingança sem Rosto, com Liam Neeson, em 1990, e O Corvo, em 1994, estrelado por Brandon Lee, entre vários outros exemplos.
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