Adelia Sampaio, a rosa do cinema brasileiro

 


A câmera subjetiva, que faz os olhos do espectador na cena de um filme, nos guia pelo corredor de um edifício aparentemente antigo. A cada passo, ouvimos batimentos cardíacos. Não se trata de pessoa que vai em direção ao apartamento onde acontece a maior parte da trama de Denúncia Vazia (1979). O coração não é de algum personagem. É o coração do espectador, angustiado com o ambiente urbano claustrofóbico. Angústia, essa, que será acentuada com os acontecimentos dos oito minutos deste primeiro curta-metragem dirigido e escrito pela cineasta mineira Adelia Sampaio.

Somos apresentados ao casal protagonista, dois idosos interpretados por Rodolfo Alena (1910-1980), cujo currículo inclui quase cem filmes, mais de 300 peças e algumas novelas, e Catarina Bonackie (1919-2002), de carreira também extensa, intensa e que um ano depois estaria em Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues.

Cineasta cinéfila, ao estilo François Truffaut e seus contemporâneos da Nouvelle Vague, e outros como Martin Scorsese e Quentin Tarantino, Adelia não detém “apenas” o domínio técnico do cinema. Conhece o cinema em sua essência, sua história.


Descobriu a sétima arte aos 13 anos, pela irmã Eliana, três anos mais velha, que a levou ao cinema Metrô Passeio, no Rio de Janeiro, para assistir nada menos que Ivan, o Terrível (1944, de Sergei Eisenstein). Eliana também a introduziu ao livro O Capital, de Karl Marx.

Trabalhou com tantos nomes do Cinema Novo, reduto de grandes cineastas, de esquerda, de tom progressista, contrários ao regime militar, e mesmo neste ambiente lidou com o preconceito. Os homens não estavam acostumados e verem uma mulher em posição de comando, sem baixar a cabeça, dentro do universo cinematográfico. Casou com o jornalista Pedro Porfírio (1943-2018), perseguido e preso pela Ditadura e com quem teve Vladimir e Geórgia.

Tantos nomes masculinos podem fazer desavisados a acharem que a diretora chegou aonde chegou por conta deles. Muito pelo contrário. Adelia soube extrair o que havia de positivo deste ambiente de cinefilia, engajamento, enfrentou machismo, racismo. Com coragem e talento rompeu barreiras.

Antes de roteirizar e dirigir Denúncia Vazia, escreveu e assinou a direção de produção de O Segredo da Rosa (1974). Nele, acompanhamos duas mulheres que lutam para sobreviver no subúrbio do Rio de Janeiro. Também mostra crianças se perdendo da família. Adelia viveu anos longe da mãe. Vida e arte se misturam em sua trajetória.

O título Denúncia Vazia faz referência à lei que permite a retomada de um imóvel por seu locador, depois do término do prazo de locação, não importa o motivo que ele tenha para retomar o imóvel e nem a situação dos inquilinos. A cineasta chegou a ser despejada.


Filmou, como fez na maior parte de sua carreira, com poucos recursos, na base da cooperação. E em sua estreia atrás das câmeras traz todo o seu background cinéfilo. Ao entrarmos no apartamento, está o casal. Ele pede à esposa para deixar a louça de lado e assistir televisão ao seu lado. Ela faz crochê. Lembramos de situações vividas em casa com nossos pais, avós. No aparelho televisivo, o locutor anuncia O Mago (1968), de Guy Green e estrelado por Michael Caine, Anthony Quinn, Candice Bergen (premiadíssima pela sitcon Murphy Brown), Anna Karina, a musa da Nouvelle Vague e de Jean-Luc Godard. Eis a citação cinematográfica, artifício utilizado à exaustão por cineastas cinéfilos, principalmente em tempos recentes em que a memória cinematográfica parece enfrentar grandes obstáculos.


O casal boceja, “pesca” - quando fechamos os olhos e caímos rapidamente no sono e depois voltamos a prestar atenção em algo. Até receberem a notícia do despejo. Tentam a ajuda da lei. Não encontram. Decidem pelo suicídio. Moradores, talvez sentindo o cheiro forte do apartamento, tentam arrombá-lo, conseguem e presenciam a chocante cena. Mais duas pessoas entraram para as estatísticas de “gente como a gente” – pessoas abandonadas pelo Estado, vítimas do capitalismo e do abandono. Em 2019, reportagem no site da Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul alertava para o aumento dos suicídios entre idosos – a prevenção era o melhor caminho para evitar fato alarmante.

Quarenta anos antes desta reportagem e 33 anos antes de Michael Haneke lançar Amor, com Emmanuelle Riva, também sobre a solidão na terceira idade e de desfecho igualmente chocante, Adelia utilizava o cinema para nos fazer pensar, questionar, termos uma visão de mundo. Seguiria assim por outros trabalhos, em especial, seu primeiro longa, Amor Maldito (1984). Neste, lançado um ano antes do fim oficial da Ditadura Militar, a diretora levou ao público a pioneira história de amor lésbico que também é ambientada num apartamento, envolve preconceito, solidão, abandono, a justiça injusta a que somos expostos, e o suicídio.

O longa-metragem, o primeiro de uma cineasta negra a chegar ao circuito comercial brasileiro, retoma outra característica da diretora: a trama baseada em fatos. Conhecemos a relação amorosa entre a executiva Fernanda (Monique Lafond) e a ex-miss Sueli (Wilma Dias). Reprimida pela família evangélica e conservadora, Sueli comete suicídio. Fernanda é acusada de responsável pela morte da companheira e julgada por um tribunal machista, homofóbico. O tema considerado apelativo pela Embrafilme o impediu de ser exibido em festivais internacionais, foi boicotado pela agência governamental e só ganhou espaço nas salas de projeção ao ser enquadrado como pornochanchada. Ainda assim alcançou público considerável e ganhou status de cult, ao colocar dedos em feridas, questionar a hipocrisia do dito “cidadão de bem”, e a maneira como as mulheres são tratadas pela sociedade. Muito antes de séries como a popular Law & Order: Special Victims Unit, o mais longevo seriado televisivo live action dos Estados Unidos na história, retratarem situações parecidas em diversos episódios.

Adelia Sampaio: O Swgredo da Rosa foi o primeiro livro da Coleção Santos Film Fest. 

O pioneirismo de Adelia levou tempo a ganhar o devido reconhecimento. Num país de racismo estrutural descrito à perfeição pelo professor Silvio Almeida, onde Lugar de Fala é incompreendido como nos mostra a professora Djamila Ribeiro, foi preciso que a historiadora Edileuza Penha de Souza arrebatasse: a primeira cineasta negra brasileira é Adelia Sampaio. Isso por que num evento em Brasília - 1º Encontro de Cineastas e Produtoras Negras - iam homenagear outra diretora e a pesquisadora tratou de avisar a universidade responsável pela programação. Adelia filmou pouco, é verdade. Azar do cinema nacional. Sorte do teatro: ela e o diretor e ator Miguel Falabella formaram parceria de sucesso em vários espetáculos.

Também não podemos escrever sobre Adelia sem lembrar sua irmã, Eliana Cobbett, primeira produtora-executiva relevante no Brasil, responsável pelas produtoras Tabajara Filmes e Difilmes,  que    distribuiu, administrou, e captou recursos para trabalhos de Glauber Rocha, Luiz Carlos Barreto, Cacá Diegues, Júlio Bressane e Arnaldo Jabor, para citar alguns.


A obra de Adelia repercute. Na Academia, são exemplos o Trabalho de Conclusão de Curso de Clarisse Cê de Oliveira, na faculdade de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, intitulado As Trajetórias de Adelia Sampaio na História do Cinema Brasileiro (2017), e o artigo Adelia Sampaio: Uma Cineasta Que Ousou Ser, de Evelyn dos Santos Sacramento, apresentado no Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress. Foi homenageada no Santos Film Fest – Festival Internacional de Cinema de Santos, em sua sexta edição, quando a diretora ganhou uma autobiografia intitulada O Segredo da Rosa, nos moldes da Coleção Aplauso do Estado de São Paulo. Seu pioneirismo deu voz a tantas jovens diretoras que hoje conseguem exibir seus filmes em festivais no Brasil e no exterior, como Sabrina Fidalgo, Yasmin Tainá, Vitória Felipe, entre outras. Em seu canal no YouTube é possível acessar toda a sua filmografia. Fica a dica.

Homenageada no Santos Film Fest, edição virtual durante a pandemia. 



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